Saiu no site A CRÍTICA – CAMPO GRANDE / MS:
Veja publicação original: Violência contra a mulher do campo é pouco abordada, diz subsecretária
A esse ambiente de tortura some o fato de que, historicamente, o campo é um espaço de dominação masculina, onde as organizações rurais são em sua maioria gerenciadas por homens
A subsecretária alega a importância da comunicação em lugares de difícil acesso / Divulgação
Quando falamos em violência contra a mulher quais as primeiras imagens que comumente vem a sua mente? A mulher com marcas de espancamento pelo corpo, a mulher com hematoma facial ou as notícias em sites ou telejornais, de mulheres da área urbana que ao declarem o fim do relacionamento ao parceiro foram perseguidas e agredidas e, muitas das vezes, mortas? Possivelmente, sua resposta deve estar entre uma das três opções.
Cultivo do medo
Por outro lado, raramente, nos surge à figura da mulher camponesa, aquela que vive entre o azul do céu, o verde do cultivo, o ar puro das matas e a pureza das águas, não é mesmo? Talvez, porque o bucolismo do campo destoa da obscuridade da violência, concomitantemente, em que poucos são os casos rurais que chegam ao nosso conhecimento através da grande mídia. “Temos percebido entre as mulheres do campo e do interior, que muitas delas não conhecem as violências tipificadas na Lei Maria da Penha. Então, a gente tem falado com elas de forma muito aberta sobre as formas de violência, como buscar ajudar, como denunciar”, afirma a gestora da Subsecretaria, Luciana Azambuja.
A decisão de denunciar só ocorreu quando a agricultora Ana Cristina* sentiu na pele a presença da morte. “Voltei da lavoura e fui para o quarto trocar de roupa. Então, ele chegou no quarto, puxou conversa e me pediu o celular, disse que eu não ia ligar para ninguém. O medo foi tanto que, ali, deu vontade de ir no banheiro, pensei em correr, mas, ia ser pior. Sei que me torturou, por muito tempo, com uma faca, achei que ia morrer e chorei muito. Mas, por Deus, chegou gente batendo na porta de casa e, sei lá, o que deu na cabeça dele. Acho que isso desmotivou. Foi desse dia em diante que mesmo com medo, resolvi denunciar”.
A esse ambiente de tortura some o fato de que, historicamente, o campo é um espaço de dominação masculina, onde as organizações rurais são em sua maioria gerenciadas por homens. Situação que involuntariamente contribui para o silêncio feminino. “Elas acabam tendo vergonha e não procuram ajuda. Aqui, temos cinco casos de mulheres em situação de violência doméstica. Sou uma das poucas a presidir uma associação e sinto que por eu ser mulher, muitas vêm e desabafam, mas, têm medo de denunciar. É necessário esse trabalho de apoio do poder público”, afirma a agricultora Eucília Conegundes, presidente da Associação do Assentamento Sete de Setembro, do município de Terenos.
Apesar de ter registrado um B.O – Boletim de Ocorrência, que exige que o agressor mantenha-se afastado da vítima e seus familiares, a agricultora por temer pela vida tomou uma difícil decisão, “Eu sai só com a roupa do corpo. Deixei a criação de animais, os produtos de aplicar na lavoura e outras coisas que eu comprei com o meu trabalho, porque ele chegou a falsificar documento para só ele vender as coisas e ficar com o dinheiro. Eu não via a renda do sítio. Nesse tempo, eu tive que me virar, trabalhar pra fora. Ele não trazia nada para a casa”, lamenta a agricultora.Por não ser esse espaço o mais adequado para o acolhimento, Luciana Azambuja orienta, “Ela não precisa ir ao sindicato rural, porque lá pode ficar envergonhada de contar a sua história. Mas, ela pode procurar o Cras ou o Creas, do município, ou a Agraer que pode informar a ela onde receber orientações e ser protegida”, lembra a subsecretária que, ainda, cita as melhores alternativas para romper o vicioso ciclo da violência, “Onde existe uma coordenadoria da mulher, que são quase 50% dos municípios, os contatos podem ser feitos por lá. As cidades onde têm delegacias regionais de atendimento à mulher, que são nas 11 regiões do Estado, o contato também pode ser nas 11 delegacias de atendimento à mulher”.
Consciente de situações como essas é que a Subsecretaria vem adentrando pelo interior do Estado em busca de parcerias. Hoje, 67% dos municípios já aderiram ao ‘Agosto Lilás’, o que representa 55 das 79 cidades existentes. “Nós temos 34 cidades com coordenadorias municipais de políticas públicas para mulher e, fazemos encontros periódicos com as gestoras”, afirma Luciana.
Há três anos em execução, a campanha traz na cor lilás – combinação dos tons, azul e rosa, uma das principais mensagens: a busca por igualdade de direitos entre os gêneros. “Quando fazemos essas incursões nos assentamentos, comunidades quilombolas ou nas aldeias indígenas, o que nós procuramos é levar a informação para que uma vez que a mulher tenha conhecimento dos seus direitos, ela possa exercê-los”, explica a subsecretária.
“A maioria aguenta porque tem medo. Perto de casa mesmo tinha uma vizinha que quando a polícia chegava o marido fugia pela mata, depois retornava como se nada tivesse acontecido”, conta a agricultora que ao lembrar-se do passado não suporta as memórias e chora, “Apesar da medida protetiva, não confio. Tenho medo de ficar sozinha. Já deixei de ir a velórios, de me despedir de familiares e amigos amados por medo. Nessas horas chorei e pensei, ‘Meu Deus porquê eu? Eu não roubei e não matei, porque tenho de passar por tudo isso?’ Não ter o direito de sair, de ir se despedir, dói muito’”.
Atualmente, Ana Cristina* mora em outra cidade do Estado, dividida entre a saudade da terra natal e o medo do ex-marido. “Eu tive de ir ao psicólogo e sinto muita dor de cabeça porque ele me batia muito. Eram muitos socos e chutes que eu levava. Tive de sair fugida e não sei como vai ficar a questão do sítio. Ele saiu dizendo que eu abandonei o lar, mas é mentira. Corri para não perder a vida”, afirma ainda com a voz embargada.
Agosto Lilás
Em Mato Grosso do Sul, o Agosto Lilás foi instituída em nosso calendário oficial na forma da lei n.º 4.969/2016, sancionada pelo governador Reinaldo Azambuja. “Escolhemos agosto, exatamente, porque é o mês de sanção da Lei Maria da Penha, que completou, no dia 7 de agosto, 11 anos”, diz a subsecretária.
Pelo interior, a Agraer (Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural) aderiu à causa e vem motivando a participação de homens e mulheres nas palestras. “As mulheres que não têm renda, não têm qualificação, não têm emprego, elas não denunciam os agressores e continuam no ciclo de violência. Ela não vai denunciar o marido sem saber como que vai suprir a casa e a alimentação dos filhos. Então, nesse caso, principalmente, nos municípios de médio e pequeno porte, a Agraer dá esse suporte no empreendedorismo”.
As ações vêm sendo elaboradas respeitando as particularidades de cada grupo. “Com as mulheres indígenas, por exemplo, estamos trabalhando uma mensagem que foi criada por elas e colocada em nossos panfletos. Na aldeia Jaguapiru, em Dourados, há um slogan que elas dizem: Não faz parte da nossa cultura, temos os nossos direitos, basta de violência doméstica contra mulheres indígenas, na língua Guarani e Terena”.
E para quebrar o silêncio das vítimas que acaba por dar voz à violência contra a mulher, um trabalho vem sendo feito permanentemente. “Estamos planejando lançar, em setembro, e começar a executar o ‘MS Quilombola’. Vamos mapear as 22 comunidades quilombolas existentes nos 15 municípios. E, nesse projeto a agricultura familiar tem uma participação absurda, porque as comunidades já produzem e comercializam”, revelou Luciana que alerta, “Uma vida sem violência é o direito, no campo ou na cidade, de qualquer mulher. É essa mensagem que a gente quer levar, nenhuma mulher é obrigada a viver ou tolerar a violência. Não é natural isso”.
E, por água ou por terra, a luta por igualdade vem transpondo barreiras. “Precisamos saber conversar de forma diferenciada respeitando a cultura de cada povo ou território. Em Corumbá, a população ribeirinha está fazendo a campanha com panfletagem em barcos, também, do outro lado, na Bolívia. Em Ponta Porã, a prefeitura de Pedro Juan foi convidada para uma conversa, inclusive, com a participação de polícias, com as mulheres dos serviços de saúde, porque a gente sabe que as pessoas cruzam essas fronteiras”, justifica Luciana Azambuja.
Como não é natural a amarga posição que o Brasil ocupa entre os países com maior risco de violência à mulher. Segundo o Mapa de Violência Contra Mulher de 2015, estamos na 5ª posição, entre 83 países do mundo. Só estamos atrás de El Salvador, Colômbia, Guatemala e a Federação Russa.
“Têm muitas mulheres morrendo por causa da violência, o homem acha que é dono da mulher e pode fazer o que quer, não é bem assim. Não é fácil você criar coragem, porque no campo a gente vive longe de tudo. Um lote fica longe do outro e nem sempre os vizinhos querem se meter. Já em comparação aos países com maior margem de segurança as mulheres, O Brasil tem 48 vezes mais chances de homicídios de mulheres que o Reino Unido, 24 vezes a mais que a Irlanda ou Dinamarca e 16 vezes que o Japão ou a Escócia. “No campo, gostamos quando os homens participam dos encontros, porque eles também precisam escutar o que temos a dizer. Ás vezes, os homens não sabem que determinadas atitudes configuram uma violência doméstica, muitos deles foram criados em um ambiente com reprodução de comportamentos machistas. Então, que possamos oferecer as novas gerações um modo mais harmonioso de viver em uma cultura de não violência”, completa a subsecretária.
Mas, a mulher tem que tomar a difícil decisão de denunciar”, conclui Ana Cristina* que, como mulher e agricultora, traz no corpo e na mente os traumas da agressão.
É importante frisar que até o fechamento desta matéria houve uma grande dificuldade em encontrar mulheres dispostas a conceder uma entrevista justamente pelo medo e constrangimento de serem reconhecidas. Há inúmeros casos pela zona rural, contudo, o silêncio impera até mesmo entre as que já saíram do ambiente de violência, comportamento fruto do trauma que sofreram.