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Veja publicação original: Ordem e Progresso
Em que realidade é possível aceitar que os cursos de licenciatura tentem preparar os professores para lidar com a violência na escola?
Por Thaise Pregnolatto de Mello
Toda mulher já foi intimidada por ser mulher. As que dizem que não somente não têm consciência da intimidação. Há milênios, a força bruta é sinal de poder – e muitas vezes, questão de sobrevivência. Há séculos, a mulher é subjugada e, frequentemente, transformada em mero objeto cuja existência justifica-se exclusivamente a enfeitar, de uma forma ou de outra, a vida masculina.
Os tempos são outros e, obviamente, alguns estão incomodados com a perda de “certos privilégios”.
Quando entramos em sala de aula, logo percebemos que tamanho ainda pode ser documento. Não é necessário procurar muito para encontrar histórias de intimidação de aluno contra professora. Nem todas chegam a consequências terríveis como o episódio envolvendo a professora Márcia Friggi, mas ainda assim são bastante perturbadoras.
Eu mesma tenho minha história: há uns anos, logo que me formei, fui claramente intimidada por um aluno que parecia ter o dobro do meu tamanho com seus 14 anos. O que eu havia feito? Insisti em questionar os motivos que o levavam a nunca entregar lição de casa. Ele me peitou, ficou em pé na minha frente me olhando de cima, falou algumas palavras de baixo calão.
Depois, fui perseguida por meios digitais e, ao levar o ocorrido à coordenação, ouvi críticas ao meu comportamento. Tudo isso em uma escola particular, com estrutura de primeira, alunos com famílias, casas, seis refeições ao dia e incontáveis viagens à Disney no currículo.
Infelizmente, é mais comum do que parece e é o sintoma de uma série de crises que se desenrolam debaixo dos nossos narizes todos os dias. Falar sobre o fracasso total das últimas gerações no que tange à educação das crianças e adolescentes é chover no molhado.
Puro reflexo de uma sociedade com baixíssima tolerância às frustrações e que acredita sempre em uma espécie de direito divino que lhes concede uma credencial VIP para a vida. Sérios embates acontecem quando todos acreditam ser VIPs. Diria a minha avó que é “muito cacique para pouco índio”.
Uma sociedade baseada no narcisismo, na individualidade e no consumismo assiste ao colapso das relações, sejam essas institucionais, pessoais, profissionais. Quando parece óbvio que todos sairão em defesa da professora, começam os “mas”. Mas ela era de esquerda. Mas ela era uma má professora. Mas, mas, mas.
Em que realidade é possível justificar tamanha violência? Em que realidade é possível aceitar que os cursos de licenciatura tentem preparar os professores para lidar com a violência na escola ao invés de discutir Piaget?
Em que realidade a posição política de alguém é justificativa para linchamento? A História já nos respondeu – e todos conhecemos seus desdobramentos. Pelo menos, deveríamos. Ser professor é – e sempre deverá ser – um ato político.
O mea culpa é de todos. No Dia dos Professores, chovem declarações de amor aos antigos mestres, inúmeras imagens dizendo que deveríamos ganhar mais do que políticos, presentinhos e GIFs de coração das mesmas pessoas que, nos outros 364 dias do ano, não se importam se seu estado cumpre o piso nacional, quanto a escola de seus filhos paga ao professor, qual a carga de trabalho que ele leva para casa, qual a estrutura de trabalho que lhe é oferecida, como está a qualidade dos cursos de formação, quais as políticas públicas em discussão para a valorização da profissão ou quais as leis que regem a educação no nosso país.
São as mesmas pessoas que reclamam do trânsito quando professor se organiza para reivindicar, as mesmas pessoas que acham pura folga “ter duas férias por ano e emendar todos os feriados”.
Enquanto deveríamos estar discutindo tudo isso, os comentários ao desabafo da professora Márcia Friggi são deveras assustadores. “Essas feministas merecem”, “professor de esquerda teve o que merece uma vez que vive passando a mão na cabeça de bandido”, “isso é o que acontece em terras onde analfabeto vira presidente”.
São afirmações tão insanas – e tão repetidas – que não só depõem contra a qualidade da nossa educação histórica e sociológica enquanto nação, mas também que nos fazem andar em círculos. Nos mesmos de sempre: explicar o óbvio ululante para quem não faz a menor questão de entender.
Como na sala de aula.
As salas de aula são simplesmente reflexo da sociedade que existe fora dela. A única diferença é que, para o cidadão em formação, ainda há esperança. A História nos ensina que somente a luz do conhecimento é capaz de transformar os períodos de trevas e escuridão.
É preciso ensinar empatia, é preciso falar de igualdade de gênero, é preciso que cidadãos e instituições reavaliem suas prioridades. É preciso valorizar – de verdade – o professor. É preciso entender a escola enquanto principal órgão transformador da sociedade. É preciso ensinar a ler nas linhas e nas entrelinhas.
É preciso respirar história e sociologia. É inaceitável que aluno bata em professor, que homem bata em mulher, que adultos batam em crianças. É inaceitável que as pessoas continuem encontrando justificativas para tudo isso.
Como todo professor, eu acredito em um futuro melhor. Dentro e fora da sala de aula.
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