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Veja publicação original: Luta contra o preconceito
Por Caren Miesenberger
*Entrevista originalmente publicada na Missy Magazine, traduzido por Flavia Sisti e revisado por Júlia Cristina Ribeiro. Publicado com autorização da autora.
Thaíz Hottis Polycarpo é uma pioneira: a garota de 24 anos abriu, há um ano, o primeiro centro de artes marciais que oferece cursos de defesa pessoal para a comunidade LGBT. Caren Miesenberger, colunista da revista alemã Missy Magazine, visitou a judoca na sua academia e CT Tori e conversou com ela sobre sua carreira, machismo nas artes marciais e situações que exigem a aplicação de suas habilidades na vida cotidiana.
No seu centro de defesa pessoal vocês oferecem o curso para a comunidade LGBT. Como isso aconteceu?
Thaíz: Nós treinávamos aqui normalmente quando um estudante chegou e disse que ele era gay e que queria aprender defesa pessoal. Nós pensamos: “Por que você diz que é gay?
Isso não importa!” E ele disse: “Nós somos um grupo que quer treinar, mas não nos sentimos bem na maioria dos centros.” Então, dissemos: “Claro, vamos tentar.” No começo eram só duas, três pessoas. Um membro começou, depois, a tornar isso público. Desde então, o projeto tem crescido com força. Mas, para nós, nunca foi um desejo ser somente uma academia LGBT. Conosco, todos são bem-vindos.
Houve preconceito contra o grupo LGBT?
No estúdio, com a gente, treinam mais de cem crianças – a maioria entre 10 e 15 anos. Alguns(as) dos(as) participantes dos nossos cursos me perguntam se eu não teria medo do preconceito por parte das mães dessas crianças. Mas, para mim, era claro que iríamos pegar exatamente esse ponto e fazer um trabalho de conscientização.
Esse trabalho de conscientização trouxe frutos?
A percepção mudou completamente. Nós fizemos um encontro com todas as crianças onde explicávamos qual era a diferença entre os LGBT e os outros. Ali, eu me assumi lésbica para eles. Agora eles sabem que somos pessoas normais. Hoje, quando eu não estou lá e alguém chega pedindo informações do curso LGBT, as crianças já sabem como lidar com essas pessoas. Eles passam seus conhecimentos livres de preconceitos, ainda, para outras crianças. Isso é ótimo.
Há quanto tempo você treina judô?
Eu tenho 24 anos e treino há vinte anos (risos). Eu cresci na favela do Morro dos Prazeres, no Rio Comprido. Para mim era difícil treinar judô, porque é muito caro e há pouco financiamento. Muitas vezes, meu pai teve que decidir se o dinheiro seria gasto com comida ou treinamento. Superar todas essas barreiras – estudar o esporte, criar a própria academia e lutar contra o machismo – foi muito difícil.
Como foi abrir sua própria academia?
Eu gerencio o CT Tori junto com meu sócio, mas eu sou a chefe. A Sapatona, a chefe das lésbicas (risos). Eventualmente, eu cansei de me submeter aos homens. Uma vez, enquanto eu conduzia um treino no Centro da Cidade, o proprietário me disse que eu poderia dar aula, mas não deveria lutar contra homens. Então eu parei de ensinar lá. Meus alunos e alunas me seguiram e o chefe da academia ficou sozinho (risos).
Na cena brasileira de artes marciais há muitas academias que são especializadas para mulheres e LGBT?
Aqui no Rio de Janeiro eu não sei de nenhuma outra além da minha. As reações à nossa
oferta mostram que também falta em outros lugares. Na nossa página do Facebook, muitos comentam que também querem cursos em suas cidades. Nós fomos os primeiros que tiveram essa ideia e somos, portanto, uma espécie de pioneiros(as). Que está faltando [academias] e que há muito machismo, eu mesma percebi quando comecei a dar aulas. Houve academias que não queriam me pagar o mesmo salário dos treinadores homens. A área de artes marciais é muito difícil para as mulheres – e mais ainda para os LGBT. Agora eles começaram a se organizar. Isso ajuda. Antes acontecia que uma mulher era considerada lésbica na hora. Isso também muda lentamente.
Como o machismo ainda se mostra?
Várias vezes os lutadores comentam: “Ah, você também ensina?” Eu tive que mostrar que eu não era somente boa, mas que eu era realmente boa. Às vezes, alguns homens vêm aqui e dizem: “Eu quero fazer judô.” Então, eu digo: “Prazer em conhecê-lo, eu sou a treinadora”, e eles: “Você?” Nos treinos eu tive que empurrar com força para mostrar que eu merecia respeito. Eles, então, diziam: “Meu Deus, você realmente é forte!” Isso é trabalho extra. Se eu fosse um homem, eu não precisaria mostrar isso.
Você já teve que usar seus conhecimentos do judô no dia a dia?
Com certeza. Uma vez eu estava em uma festa e um cara segurou meu pulso e não me soltava. Um desses homens que não aceita um “não”. Ele insistia. Eu dizia: “Eu não quero, me deixa ir!” E ele: “Não seja assim!” Eu tive que torcer seu braço e machucá-lo. Ele disse: “Porra, isso não era necessário!” Eu pensei: “Você não era necessário.” Exatamente o mesmo me aconteceu em uma festa gay no bairro nobre de Copacabana, eu também precisei usar o judô.
Mas você não participa das aulas de defesa pessoal para LGBT?
Até agora, ainda não. Eu tenho vontade, mas, como chefe, eu estou muito ocupada. Assim que tiver um tempo, eu vou participar do curso de defesa pessoal, porque eu não posso usar o judô sempre no dia a dia. Se eu estiver sendo atacada por alguém, eu não posso machucar a pessoa como no judô. Defesa pessoal é mais efetiva. Nossos(as) treinadores(as) de Krav Maga ensinam o uso em situações que realmente podem acontecer nas ruas. Lá, as pessoas aprendem o golpe nos tecidos moles e o movimento correto das articulações do pescoço. No judô, eu aprendo isso para a luta, mas não para situações de conflitos.
Você também participa de competições?
Faz 5 anos que não participo mais, porque eu tenho um problema nas costas. Portanto, eu foco nos cursos que eu dou. Por ser um esporte muito caro, era impossível financiar a faculdade, trabalhar e treinar. Se alguém quer treinar em nível olímpico, o tempo vai completamente pra isso.
Você cresceu no Morro dos Prazeres, uma favela em Rio Comprido. Seu centro é no bairro da Lapa. Você já deu aulas em Rio Comprido?
Não, mas eu estive envolvida em alguns projetos. Um dia eu quero criar um projeto lá para crianças cujos pais não podem pagar a mensalidade pros treinos de judô, exatamente como meu pai não podia naquele tempo. Então eu me sentiria realizada.
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