Saiu no site REVISTA MARIE CLAIRE:
Veja publicação original: Maria da Penha: “Lutei 19 anos e seis meses por justiça”
A Lei Maria da Penha completou 11 anos este mês. Conversamos a farmacêutica que deu origem ao nome graças à sua luta conta a violência doméstica – e foi, inclusive, indicada ao Nobel da Paz de 2017
29 de maio de 1983. Maria da Penha acorda na madrugada com o estampido de um tiro disparado por seu marido, o economista Marco Antônio Heredia Viveiros. A bala atingiu a coluna vertebral, deixando-a à beira da morte. Foram meses de reabilitação até que o veredito foi dado: estava paraplégica. E este mesmo homem que apertou o gatilho da espingarda tentou novamente: dessa vez por eletrocussão, debaixo do chuveiro. Essa história é de Maria, mas poderia ter sido de Joana, Gabriela ou Paula – afinal, a violência doméstica está dentro da casa de mais de um milhão de famílias brasileiras, segundo dados do IBGE. Ela se safou da morte, mas muitas não têm a mesma sorte.
A luta de Maria da Penha por justiça durou 19 anos e seis meses e se tornou a lei N° 11.340, promulgada em 2006. Graças a ela, mulheres estariam protegidas não só da violência física, mas da psicológico, sexual e patrimonial. Mas será que ela é bem aplicada no Brasil? E essas mulheres, como se sentem com relação aos seus agressores? Marie Claire conversou com Maria da Penha, que contou um pouco mais sobre sua vida e sua missão na luta contra a abuso doméstica.
Marie Claire: Você conseguiu superar a sua agressão?
Maria da Penha: Sim! O que me ajudou foi o resultado da minha luta por justiça, numa ação muito positiva para o Brasil e para as mulheres brasileiras.
MC: Na sua opinião, seu agressor foi devidamente punido?
MP: Não, mas a pena dele foi de acordo com os critérios da época – e pelo menos foi punido de alguma forma. Lutei 19 anos e seis meses por justiça: a defesa do réu colocava obstáculos e lançava recursos protelatórios para chegar o momento em o crime fosse prescrito. Ele pegou dois anos de cadeia fechada e o restante, de 8 anos, pagou com regime semiaberto e aberto.
MC: Você conseguiu perdoá-lo?
MP: Não me atento ao perdão. Foi uma batalha árdua e o que vale agora é eu estar investindo na concretização do resultado dessa luta.
MC: É custoso relembrar em entrevistas toda essa situação traumática que você viveu?
MP: Sim, afinal a gente relembra cenas difíceis. Mas meu desabafo aconteceu através do livro [Sobrevivi… Posso Contar. Editora Armazém da Cultura], então eu relaxei. Agora estou vivendo um outro momento, que é de muita limitação, mas também de muitas conquistas. Desde o dia em que a lei foi sancionada, me preocupo muito e não deixo de atender os jornalistas, tudo pela conscientização das mulheres sobre seus direitos. Fazer com que o poder público crie as políticas necessárias para a lei funcionar é muito importante para mim. Não vou perder tempo em pensar no que passou: foi uma coisa ruim que se transformou numa boa e tenho que vestir essa camisa.
MC: Na sua opinião a lei Maria da Penha ainda precisa passar por mudanças?
MP: Não, a lei existe, mas só funciona se sair do papel. A mudança que precisa acontecer é com o gestor público. As políticas públicas só se encontram nas grandes cidades, geralmente as capitais. Os médios e pequenos municípios deveriam um Centro de Referência da Mulher para dar apoio a quem viveu uma situação de violência e não sabe como sair dela. Lá tem uma equipe de advogados, psicólogos e assistentes sociais que, em conjunto, vão orientá-la.
MC: Nas delegacias comuns existe um despreparo para tratar esses casos?
MP: Também. Existem delegadas muito comprometidas e outras não capacitadas – a minoria, ainda bem. O Estado como um todo deixa a desejar. Às vezes o próprio policial é omisso. No local do crime, em vez de fazer o flagrante, ele aconselha o agressor e o deixa em liberdade. É aí que a descrença da lei acontece. Esse policial tem que ser capacitado anualmente e cumprir o seu papel.
MC: A lei abrange também a violência psicológica. Imagino que seja ainda mais difícil de ser colocada em prática.
MP: Sim, pois muitas vezes a mulher não se coloca como vítima. Falta conhecimento. Agora eu estou cobrando muito que o gestor público se comprometa com essa causa. A gente precisa garantir um futuro sem violência para nossas descendentes. E esse gestor público tem descendentes que ele não vai poder proteger a vida toda.
MC: Estamos vivendo um momento de muita união entre as mulheres, que lutam pelo respeito e empoderamento. Você acha que isso muda de fato alguma coisa nos homens agressores?
MP: Nós já temos encontrado homens muito comprometidos com essa questão. No momento em que ele entende o que é a violência contra a mulher, ele se identifica com um agressor em potencial. Mas, infelizmente, outros não se identificam, pois foram educados dessa maneira. O homem que sofreu violência doméstica na sua infância, ou viu sua mãe ser maltratada em casa, pode apoiar a lei de maneira respeitosa ou repete aquilo que aprendeu. Então, no momento em que o Estado cumpre seu papel de punir, muita gente se beneficia disso. Por exemplo: ouvimos depoimentos de mulheres que dizem: “depois que meu vizinho foi preso, nunca mais meu marido levantou a mão pra mim”.
MC: Existe algum tipo de reabilitação para os agressores?
MP: Existe e a lei determina isso, mas devido à falta de compromisso e a dificuldade de implementação das políticas públicas, essa reabilitação para o agressor não está disponível em todos os municípios. A lei é muito carente desse tipo de conscientização. A reabilitação funciona como uma reflexão sobre o motivo dele ser um agressor. Quando isso é esclarecido, se espera que em um novo relacionamento ele não repita a mesma conduta.
MC: Existe um ciclo da violência doméstica?
MP: Sim. Isso que faz com que a mulher seja agredida e queira se separar, mas dê uma nova chance depois que o agressor se diz arrependido. Ela tem esperança de que ele mude, mas isso não acontece na maioria dos casos.
MC: Por que é tão difícil denunciar?
MP: São vários os fatores: a dependência econômica, o receio da denúncia não dar certo, além do medo de morrer ou perder os filhos. Quando uma mulher vai a uma delegacia, não é a primeira vez que ela sofre violência. O que ela precisa ter em mente é que o abuso vai mais intenso e recorrente. Ela corre o risco de ser assassinada.
MC: Muitas tentam retirar a queixa, certo?
MP: A leia agora não admite mais retirar a queixa. Antes a pessoa ia na delegacia, denunciava, e no dia seguinte voltava, pois o marido prometia novamente não mais agredi-la. Agora a retirada só pode ser feita na frente do juiz. O processo caminha independente da vontade dela. Ele é um criminosos e deve ser punido.
MC: Qual é o papel do Instituto Maria da Penha?
MP: Orientamos quem nos procura – muitas nem sabem que existe o número 180. Além disso, trabalhamos a educação dos jovens a nível universitário. Temos levado o conhecimento a alunos de maneira gratuita, com a colaboração dos professores que se agregam a essa causa. Estamos trabalhando desde o ano passado, também, em uma pesquisa pioneira em parceria com a Universidade Federal do Ceará, na qual mais de 10 mil mulheres das capitais nordestinas já foram entrevistadas para saber exatamente o comportamento da vítima de violência no percurso de dois anos.
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