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Veja publicação original: O uso da Lei Maria da Penha como instrumento de vingança é um mito
por LÍVIA MAGALHÃES
Sem dúvida você já ouviu alguém dizer que “as mulheres usam a Lei Maria da Penha para se vingar dos homens”, ou que “a Lei Maria da Penha protege as mulheres mentirosas que querem prejudicar os homens”. As afirmações costumam a ser seguidas por aquela história do amigo de um amigo que sofreu horrores nas mãos de uma mulher inescrupulosa que inventou histórias sobre ele na Justiça.
Isso é comum, e exige muita ponderação do ouvinte, atributo que praticamente não existe quando o assunto é violência doméstica e familiar. O sentimento de raiva e indignação, permeados por experiências de relacionamentos anteriores influenciam a pessoa que se depara com o mito do uso da Lei Maria da Penha como instrumento de vingança das mulheres. No final, sabemos que um mito repetido diversas vezes acaba se tornando a verdade dos desavisados.
O mau uso da Lei Maria da Penha tem sido o argumento de homens – e de mulheres, por incrível que pareça – para atacar uma legislação específica de proteção às vítimas de violência doméstica e familiar. Alegam que mulheres que não foram vítimas de quaisquer crimes, como ameaça, injúria, difamação ou lesão corporal, buscam as delegacias de atendimento à mulher com o objetivo de se vingar ou coagir o homem a fazer algo que se recusa.
A Lei Maria da Penha, eles dizem, seria uma arma nas mãos de mulheres rancorosas que pretendem obter as medidas protetivas para chantagear os homens e afastá-los dos próprios filhos.
Sendo assim, essa alegada injustiça contra os homens seria combatida com a rigorosa exigência de provas da violência sofrida.
Outro argumento dos defensores dos homens injustiçados seria a violação do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, considerando que as medidas protetivas são deferidas sem ouvir o suposto agressor e sem dar-lhe a oportunidade de produzir provas das mentiras alegadas pela mulher.
Em que pese a previsão constitucional de igualdade entre homens e mulheres sabemos que esse equilíbrio não acontece na vida real. Basta assistir ao noticiário: diariamente mulheres são assassinadas com requintes de crueldade, discriminadas, assediadas sexualmente, estupradas, humilhadas, ameaçadas, espancadas, torturadas psicologicamente e privadas de sua liberdade. A mulher é tida como um objeto pelos seus algozes – homens que ainda tratam a mulher como propriedade, muitas vezes descartável.
Diante desse contexto, são necessárias ações afirmativas, ou seja, um conjunto de políticas públicas para a proteção de minorias e grupos discriminados historicamente. Não se busca obter um equilíbrio abstrato entre homens e mulheres, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades na medida em que afetam os direitos humanos
Como surgiu a Lei Maria da Penha?
Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por omissão, negligência e tolerância no caso da Maria da Penha – vítima de duas tentativas de homicídio pelo seu marido, uma das quais a deixou paraplégica –, e recomendou que o país prosseguisse e intensificasse o processo de reforma para evitar a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil. Diante dessa recomendação, a Lei Maria da Penha foi sancionada em 2006 e desde então tem sido objeto de louvor e de críticas, principalmente em relação às medidas protetivas.
A Lei Maria da Penha possui natureza essencialmente penal, uma vez que seu objetivo é coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, as medidas protetivas de urgência podem ter caráter processual penal ou cível, a depender se está sendo protegida a integridade física da vítima ou seu patrimônio.
De fato, para o deferimento das medidas protetivas de urgência basta a palavra da vítima. O juiz analisará diante do quadro apresentado quais medidas serão adequadas para o caso concreto dependendo de sua gravidade, podendo ser determinada a proibição de aproximação da vítima, contato com a vítima, afastamento do lar, dentre outros. Caberá prisão preventiva apenas quando presentes os requisitos legais.
Por conta da urgência em assegurar a integridade física de uma pessoa, o Código de Processo Penal (CPP) já prevê a aplicação de medidas cautelares quando necessário para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e para evitar a prática de infrações penais. Sendo assim, é importante lembrar que a Lei Maria da Penha não é a única a prever medidas de urgência. Mesmo se ela não existisse o juiz poderia aplicar as medidas cautelares do CPP com o objetivo de resguardar a integridade física e psíquica da mulher. Não culpem a Lei Maria da Penha nem as mulheres por essa blindagem contra o agressor.
O CPP traz como regra a intimação da parte contrária, salvo em casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. Isso significa que se houver urgência ou perigo de a medida tornar-se ineficaz o juiz não comunicará a outra parte antes de decidir sobre a medida, e isso muitas vezes acontece quando o assunto é Lei Maria da Penha. Apesar disso, é fato que as alegações da mulher serão contestadas posteriormente, como ocorre em todos os casos de urgência, seja na esfera penal seja na esfera cível.
Não há violação ao princípio do contraditório e ampla defesa. Apenas o momento dessa defesa será postergado, situação que não se restringe à Lei Maria da Penha
E a falta de provas?
Quanto à ausência de provas das alegações das vítimas de violência doméstica e familiar, inquestionável que muitos crimes que ocorrem dentro do ambiente doméstico, na intimidade do casal, não deixam vestígios ou testemunhas, como por exemplo a ameaça, a injúria, a difamação e o constrangimento ilegal.
Diante da peculiaridade da situação e da posição vulnerável da mulher neste contexto, tanto o legislador quanto a jurisprudência garantem a relevância da palavra da mulher em casos de violência doméstica e familiar. Isso se justifica pela necessidade de o poder público garantir a segurança da vítima e combater a violência. Sua integridade física e mental são bens jurídicos tão valiosos que a mulher violentada deve ser cautelarmente protegida.
Os inconformados irão bravejar: com esse poder a mulher irá mentir para prejudicar o homem! Não nego a existência de casos similares. Inclusive defendi um suposto agressor em uma situação dessas. Sabe o que aconteceu? A mulher foi desmascarada na primeira audiência pelo juiz apesar de ter obtido as medidas protetivas anteriormente.
Não há desfecho diferente para qualquer pessoa que decide mentir para a Justiça sobre qualquer crime: será comprovada a sua farsa e ela será devidamente punida por denunciação caluniosa
Não há dados sobre a ocorrência de denúncias caluniosas de mulheres que alegaram ser vítimas de violência doméstica. Sendo assim, não é possível afirmar objetivamente que essa prática seja maior do que a de outros crimes, como estelionato, por exemplo.
Por outro lado, no Brasil, há 13 casos de feminicídios por dia, segundo o Mapa da Violência 2015, número que nos coloca na 5ª posição do ranking de países que mais matam mulheres no mundo. O IPEA aponta que 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados, amigos ou conhecidos da vítima. O Data Popular aponta que 3 em cada 5 mulheres jovens já sofreram violência em relacionamentos.
Os números são claros, e a jurisprudência confirma que a palavra da vítima deve ser levada em consideração para que a violência contra a mulher seja combatida. Não há qualquer injustiça nessa ponderação. Os instrumentos legais conferidos pela Lei Maria da Penha são plenamente legítimos e se justificam pelo valor dos bens jurídicos que ela protege: a integridade física e psíquica da mulher.
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