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“Tentei salvar minha mãe do fogo e tenho orgulho das cicatrizes que ganhei”

Saiu no site ESTILO UOL:

 

Veja publicação original: “Tentei salvar minha mãe do fogo e tenho orgulho das cicatrizes que ganhei”

 

Helena Bertho

Há três anos, Amanda Carvalho, 19, viu seu pai atear fogo em sua mãe e tentou salvá-la, em São Paulo. Teve 57% do corpo queimado, mas a mãe não sobreviveu. Ao mesmo tempo em que lida com o trauma do que viveu, precisou aprender a aceitar e amar seu corpo repleto de cicatrizes.

Dia 9 de dezembro de 2014 foi o dia do meu renascimento. Era horário de verão e ainda estava escuro quando minha mãe se preparava para ir trabalhar. Conversávamos na cozinha e ela pediu que eu fosse com ela até o portão. Do nada, meu pai entrou na garagem. Eles estavam separados havia umas semanas.

Ali, vi meu pai atear fogo na minha mãe e, em uma tentativa desesperada de tirá-lo de cima dela, a gasolina acertou em mim também. Corri para o banheiro e não lembro de quase nada mais desse dia. Fui levada para o hospital onde fiquei um mês na UTI e mais quase dois internada, com 57% do corpo queimado.

Minha mãe morreu

Meus pais foram casados por mais de 20 anos e nunca tiveram uma relação boa: ele sempre foi muito agressivo, ciumento, e batia nela por qualquer coisa. Naquele ano, finalmente tinham se separado, mas minha vó paterna morava na casa ao lado e ele ainda aparecia muito por lá. Por isso no dia conseguiu acesso.

O trauma e os remédios que tomei depois me fizeram não lembrar muito do que aconteceu ali. Sei que sobrevivi e que o fogo não se espalhou. Minhas três irmãs — uma mais velha, de 21, e duas mais novas, de 11 e 5 anos — estavam dormindo na hora e não se machucaram.

No hospital, lembro que minhas irmãs, orientadas pelas enfermeiras, me falavam que minha mãe estava internada e muito mal. Em algum lugar dentro de mim, porém, eu sabia o que havia acontecido, mas queria que alguém me falasse.

Então um dia perguntei para uma enfermeira: ‘minha mãe morreu?’. Ela não quis falar, mas logo depois vieram me contar. Minha mãe morreu no dia do crime, com mais de 80% do corpo queimado, e meu pai se enforcou.

 

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Por muito tempo, me culpei pelo que aconteceu

Depois do hospital, fui enviada para um centro de tratamento de pessoas queimadas para recuperar minha pele. Paralelamente, comecei a fazer terapia, para conseguir lidar com o trauma. Me incomodavam muito as marcas das queimaduras, mas tudo era pior porque minha mãe não estava ali. Eu sempre pensava que se ela estivesse ao meu lado, seria mais fácil.

Vivi todo um processo de recuperação que, do ponto de vista físico, foi rápido. Logo estava vivendo com minha tia e minhas irmãs e fui retomando atividades. Mas psicologicamente, eu me culpava pelo que aconteceu; achava que podia ter feito alguma coisa para que ela ainda estivesse aqui. Com o tempo, fui entendendo que não era culpa minha. Até o fato de eu ter me queimado era um sinal de que tentei, sim, fazer o que podia.

 

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Não conseguia me olhar no espelho

Apesar de serem sinais dessa tentativa, as queimaduras eram marcas muito gritantes no meu corpo que eu tinha dificuldade em aceitar. Na casa da minha tia havia um espelho no caminho do banheiro. Quando eu ia tomar banho, não gostava de passar ali, não queria me olhar. Por tempos, sair de camiseta de manga curta estava fora de cogitação.

Antes eu já não era adepta das minhas formas. Nunca gostei de ser muito magra ou de ter seios pequenos. Até do meu cabelo cacheado reclamava. Depois disso, ainda acabava atraindo olhares. As pessoas vinham perguntar o que aconteceu. E se umas ficavam preocupadas, a maior parte das vezes era pura curiosidade e isso me irritava muito.

E se eu falava o que aconteceu, atraía um olhar de pena, que me deixava muito frustrada. Eu acabava saindo de casa de cabeça baixa, fingia que era surda, para ninguém falar comigo. Tinha vergonha e me sentia diferente do resto.

 

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Aceitei minhas cicatrizes como meu escudo

Até o dia em que finalmente percebi que o fato de não me amar não afetava ninguém além de mim. Não sei bem como foi, nem a data exata, mas me forcei a mudar e foi libertador. Se sair de casa, com todos me olhando e encarando minhas cicatrizes me incomodava, passei a usar cropped, levantar a cabeça e sorrir quando perguntavam o que era isso no meu braço.

Se me olhar no espelho era a coisa mais dolorosa, passei a me olhar todos os dias, com calma, camada por camada, até meu corpo se tornar meu melhor amigo. Me olhava com outros olhos, com meus próprios olhos, de dentro para fora, até que as lágrimas secassem e eu me sentisse aliviada.

Algo que me ajudou nesse processo foi a fotografia. Eu sempre amei fotografar e estava no cursinho para vestibular, mais ou menos um ano depois do acidente, quando vi no Instagram o ensaio nu artístico que uma professora fez. Eu achei lindo.

Comentei com ela, que falou de mim para o fotógrafo que quis me fotografar e eu amei a experiência. Quando recebi as fotos, fiquei horas me olhando, emocionada.

Isso passou então a ser algo a mais, parte do meu processo de aceitação. Como conhecia vários fotógrafos, fiz outros ensaios e comecei a postar no Instagram. De repente, passei a receber mensagens de outras meninas, falando sobre autoaceitação e amor pelo próprio corpo, o que me estimulou e fortaleceu.

Acho que nunca vou aceitar o que aconteceu, mas voltei a amar o meu corpo. Se antes eu tinha vergonha das minhas cicatrizes, hoje tenho o maior orgulho e as amo. Elas fazem parte de mim, parte da minha história, de quem me tornei. Sou mais forte em tê-las. São como um escudo.

Hoje vivo com as minhas irmãs. A mais nova tem paralisia cerebral, então dedico muito do meu tempo a cuidar dela. Além disso, trabalho num call center, mas pretendo fazer faculdade — só parei o cursinho porque comecei a trabalhar e os horários não davam mais. Além disso, fico na dúvida: quero fazer medicina, mas também quero ser fotógrafa.”

 

 

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