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Veja publicação original: Só uma promotora para combater a violência contra a mulher em Roraima
Por: DANIELE AMORIM, COM EDIÇÃO DE ALINE RIBEIRO
Lucimara Campaner é a única profissional dedicada ao tema no estado recordista desse tipo de crime
A promotora Lucimara Campaner, de 47 anos, subiu ao palco de um auditório de Boa Vista, capital de Roraima, para mais uma de suas palestras sobre violência doméstica numa terça-feira de dezembro do ano passado. Diante de uma plateia lotada na Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social, discorreu sobre a importância de as mulheres denunciarem seus agressores. Sua responsabilidade era grande. Falava para interlocutoras do estado com o maior índice de feminicídios no Brasil. Segundo o Atlas da violência, Roraima registrou 11,4 óbitos para cada grupo de 100 mil moradoras em 2015 – quase três vezes mais que a média nacional (4,4 homicídios) e quase cinco vezes mais que a taxa de São Paulo (2,4 mortes), a menor do país.
Priscila*, de 42 anos, dona de casa, não desviou os olhos da promotora durante todo o tempo. Ouviu atentamente cada uma de suas palavras. Ao final da palestra, aproximou-se de Lucimara para relatar sua triste – e infelizmente comum – situação: há oito anos é agredida fisicamente pelo parceiro. Não poderia ter recorrido a profissional mais adequada. Lucimara é a única promotora titular de Roraima que atende casos de violência contra a mulher. Cuida em todo o estado de um total de 21 mil mulheres, potenciais vítimas de agressores como o parceiro de Priscila. “Trabalhamos com mecanismos para empoderar a mulher, para que ela mesma se fortaleça e tome coragem de denunciar”, afirma Lucimara. Em São Paulo, com o menor índice de feminicídio do país, há dez promotores que atuam em casos de violência doméstica.
Na última agressão, 72 horas antes da palestra, Priscila havia sido arrastada pelo marido para a rua, até que sua filha de 13 anos chamou a polícia. O sujeito, tão valente até então, fugiu antes de a viatura chegar. O policial nada mais fez além de entregar um cartão com seu número para o caso de a situação se repetir. Usou a desculpa da fuga do agressor para justificar que não levaria nem Priscila nem a filha para registrarem um Boletim de Ocorrência (BO) no Distrito Policial mais próximo.
A inabilidade do policial não encerrou a saga em busca de ajuda. Priscila contou a Lucimara que, na madrugada seguinte à recusa, foi a pé com a filha até a delegacia mais próxima de casa para prestar queixa contra o marido. Ao chegar, foi informada pelo responsável do plantão de que o Boletim de Ocorrência de violência doméstica só poderia ser registrado na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), aberta apenas de segunda-feira a sexta-feira. Sem o amparo do poder público, Priscila voltou para casa. Soube pela televisão da palestra que Lucimara daria dali a dois dias. Decidiu ir ao evento para pedir ajuda.
>> “Mulheres ricas e escolarizadas também apanham”, diz promotora
Quando Lucimara descobriu que o direito de Priscila de prestar queixa foi negado por duas vezes – a Lei Maria da Penha estabelece que o BO seja feito em qualquer delegacia, não só numa delegacia especializada –, solicitou que uma viatura a levasse para fazê-lo. Era o primeiro passo para que Priscila desse um basta na relação abusiva de oito anos.
Recorde indesejado
A organização não governamental Humans Rights Watch tentou entender por que casos como o de Priscila são tão comuns em Roraima. Entre fevereiro e maio deste ano, a ONG ouviu 31 mulheres dali, entrevistas que resultaram no estudo Um dia vou te matar. O levantamento chegou a conclusões esperadas. O estado apresenta falhas em todas as etapas do combate à violência doméstica: faltam agentes para se deslocar até as situações de emergência, o preparo dos policiais para atender as vítimas é ínfimo e nas delegacias não há espaço reservado para a vítima relatar os abusos – em especial os sexuais – com privacidade. A lista é longa.
Lucimara conhece a fundo essa realidade. Nascida em Rolândia, no Paraná, ela se formou em Direito, em 2003, na Universidade Federal do Pará. Tornou-se promotora logo depois da faculdade e se embrenhou nas comarcas de cidades do interior de Pará e Roraima, onde já participava de ações de enfrentamento à violência sexual de crianças e adolescentes. Desde 2015, é promotora titular de violência doméstica da capital, Boa Vista. Em sua rotina, de pelo menos dez horas diárias de trabalho, dá orientações, encaminha denúncias e solicita à Justiça medidas de proteção. Escuta as vítimas que a procuram, acima de tudo. Pelo menos 130 mulheres já passaram por sua sala na promotoria desde o começo deste ano. Embora seja uma combatente contumaz, Lucimara diz nunca ter sofrido represália dos agressores.
Mesmo com os anos de experiência, Lucimara não fica indiferente a nenhum caso de violência doméstica. Mas alguns relatos marcam mais do que outros. Como o de uma senhora agredida pelo filho com problemas psiquiátricos, que a promotora atendeu na última semana. Na ocasião, a idosa estava diante de um dilema. Se denunciasse, o filho poderia ser preso e não mais receberia tratamento adequado para a doença. Se não denunciasse, provavelmente continuaria apanhando.
Superado o dilema de denunciar o agressor, essas mulheres ainda têm um longo caminho pela frente. A falta de preparo dos profissionais envolvidos no acolhimento das vítimas, muitas vezes, acaba por desencorajá-las. Não são raros os casos em que policiais duvidam dos depoimentos das mulheres, em especial quando essas não exibem no corpo a agressão. “As violências psicológica, moral e física mais leve não deixam marcas. Ninguém pode exigir que ela tenha marca no corpo para pedir a medida protetiva de urgência e registrar o Boletim de Ocorrência”, diz Lucimara.
Por fim, não há garantias de que a denúncia resultará em punição. Para o crime de ameaça, a delegacia tem o prazo de três anos para apurar os fatos e enviar as informações para a promotoria. Para a acusação de lesão corporal, o prazo para a conclusão do inquérito é de oito anos. Se a delegacia não termina seu trabalho dentro do generoso tempo estabelecido, o Ministério Público não pode fazer a denúncia. O agressor sai ileso.
A dona de casa Priscila não só denunciou seu agressor, como pediu uma medida protetiva contra ele. Desde dezembro não mantém contato com o agora ex-marido. Com sorte, conseguirá ainda que ele vire réu na Justiça e pague por seu crime. Priscila não engrossará as alarmantes estatísticas de feminicídios em Roraima.
* Nome fictício para preservar a vítima
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