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Veja publicação original: Chega de machismo: deixe-as falar!
Por Tanuza Oliveira
“Foi feita agora uma pesquisa, já dei ciência à ministra Rosa, (que diz que) em todos os tribunais constitucionais onde há mulheres o número de vezes em que elas são aparteadas é 18 vezes maior do que entre os ministros… E a ministra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: como é lá? Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas”.
Esse é um trecho de um diálogo entre a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal – STF – e demais ministros durante um dia de votação na corte, e que viralizou. Nele, após uma sequência de falas entre os ministros Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, a ministra questiona o fato de Fux, ao finalizar seu posicionamento, dizer que ele iria “conceder a palavra para o voto integral (risos)”, se referindo à ministra Rosa Weber.
Porém, o momento de fala já era da ministra Rosa Weber e nada precisava ser “concedido” a ela. Esse episódio, que ocorreu na mais alta corte brasileira, talvez seja um recorte interessante de como tem se dado a ocupação de espaços, nas diversas esferas de poder, por parte das mulheres: como se a contragosto, à revelia e, principalmente, ainda sem o devido respeito.
O ESTUDO
Essa pesquisa à qual a ministra Cármen Lúcia se refere, segundo a coluna da jornalista Letícia Sorg, do Estadão, foi feita por Tonja Jacobi e Dylan Schweers, da Escola de Direito Northwestern Pritzker School of Law, de Illinois, em Chicago, nos Estados Unidos, e descobriu o efeito do gênero, da ideologia e da idade nos debates dentro da Suprema Corte Americana.
O padrão descoberto foi: as mulheres são interrompidas, em média, três vezes mais que os homens, embora elas falem com menos frequência e por menos tempo do que eles. Para chegar a este resultado, os pesquisadores analisaram discussões no Supremo norte-americano desde 1990.
E o que se vê é que, em todos esses anos, a situação só mudou mesmo de cenário. “Esse tipo de comportamento é comum, sim, especialmente se a mulher não se exercitar em não se deixar ser interrompida e aprender também a interromper os homens, quando necessário”, afirma a advogada Adélia Pessoa, presidente da Comissão de Defesa da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil em Sergipe.
MILITÂNCIA
Adélia é professora universitária, promotora de Justiça aposentada, presidente da Academia Sergipana de Letras Jurídicas, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família – e palestrante e pesquisadora. Ela atua na área há mais de 40 anos e sabe exatamente como é este cenário.
“Isso reflete um contexto cultural mais amplo, decorrente de práticas sedimentadas de domínio masculino, durante milênios. Vale exemplificar que ainda hoje, século XXI, em muitas famílias, a mulher, desde criança, é educada como uma “princesa”, com boas maneiras, meiga, suave, e o homem para ser um “guerreiro” que protege, que dá o tom do ambiente”, contextualiza.
E continua: “veja os brinquedos da menina (tudo suave, rosa, diáfano) e os do menino (luta, esportes, etc). Ensinamos ao menino a liderança, mas muito menos às meninas. Já ouvimos algumas vezes as pessoas dizerem para o menino “agora você é o homem da casa”, no caso de ser órfão de pai ou o de pai estar afastado; “homem não chora!”, “deixe de ser mulherzinha!”. Assim educamos homens que se julgam superiores às mulheres e que devem se impor ao sexo feminino”, ressalta.
EXTENSÃO DO MACHISMO
E toda essa cultura, claro, é levada para os tribunais, para as tribunas e quaisquer outros espaços de poder, nos quais o sempre pequeno número de mulheres é o reflexo direto dela, causando uma desproporcionalidade quantitativa que faz o problema se agravar.
“Os efeitos da relação trabalho e família manifestam-se apenas entre as mulheres e não entre os homens; oferta de trabalho e qualificação determinam o trabalho masculino, enquanto o feminino sofre também o efeito de condicionantes familiares. Isso também reflete nas promoções da mulher, que vem sendo alijada de alguns cargos de chefia”, analisa Adélia.
O que fazer, então? “Não se calar. Reclamar, denunciar, mas também aprender a não se deixar interromper. Aprender a interromper quando necessário. Empoderar-se. Convém lembrar que as últimas estatísticas do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – mostram que a mulher tem, na última década, alcançado uma qualificação maior que o homem”, destaca a presidente da Comissão.
“MANSPLAINING”
Mansplaining, junção das palavras “man”, homem, com “explain”, explicar, as duas da língua inglesa, significa o hábito que os homens têm de interromper as mulheres, geralmente para explicar algo que é óbvio. “Uma boa estratégia é começar a falar baixinho, de modo a que as pessoas fiquem em silêncio para poder ouvir, e o próprio interlocutor perceba que sua intervenção é inadequada”, orienta Adélia.
Mas por que isso acontece? “Não nos deixam falar e quando deixam, nos interrompem. É como se não tivéssemos respaldo para ser ouvida. Como se uma mesma opinião na boca da mulher não tivesse o mesmo significado e se não fosse importante. Não existe paridade”, atesta a advogada Valdilene Oliveira Martins, que é vice-presidente da Comissão de Defesa da Mulher da OAB/SE.
No âmbito político, o “mansplaining” é muito comum, revelador e prejudicial. “Na Assembleia, nas vezes em que isso ocorreu (interrupções ou outras formas de desrespeito), estava preparada para responder e deixar claro que cheguei ali, igualmente a todos eles, pelo voto e que mereço o respeito e o direito de me pronunciar, queiram eles ou não, e sem interrupção em minha fala”, lembra a deputada estadual Goretti Reis.
NO PARLAMENTO
Goretti Reis está no terceiro mandato, é a segunda secretária da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de Sergipe – Alese -, presidente da Frente Parlamentar em defesa dos Direitos das Mulheres e secretária da Secretaria da Saúde da Unale. Para Goretti, há uma cultura muito forte que ainda, infelizmente, impera na sociedade e traz muita preocupação.
“As mulheres são mais da metade do eleitorado (51,7%), mas ocupam apenas 9% dos assentos na Câmara dos Deputados e 13% no Senado. No ranking que avalia a participação política feminina em 190 países, apresentado pela União Interparlamentar em 2016, o Brasil ocupa 153º lugar, atrás de nações como Afeganistão. Os números brasileiros são ainda inferiores aos da média do Oriente Médio, com uma taxa de participação feminina de 16%”, revela Goretti.
Tudo isso com uma lei que determina a participação feminina nos partidos. “Primeiro, a Lei 9100/95 que determina que os partidos políticos reservem a cota mínima de 20% para as mulheres nas chapas para o legislativo municipal. Depois, em 1997, foi aprovada a Lei 9.504/97, que então fixou em 30% o percentual de vagas ao sexo minoritário e não mais às mulheres. Com a Lei 12.034/2009, conhecida como a minirreforma eleitoral, os partidos foram obrigados a preencher, e não só reservar, 30% das chapas eleitorais com candidatas”, explica.
LEGISLAÇÃO DETERMINA
Mas estas regras estão escritas apenas nas leis e não na vida das mulheres. “Os números confirmam isso”, opina Goretti. “Vale ressaltar que a política de cotas trata apenas dos cargos eletivos no Legislativo. Isto é, os cargos majoritários, os prefeitos, governadores, senadores e presidente da República não estão submetidos a nenhuma restrição por gênero. A igualdade de gênero na política ainda é um sonho distante no Brasil e os mecanismos desenvolvidos pelo poder público para efetivar essa igualdade não têm ofertado os resultados desejados”, constata.
Mesmo assim, para Goretti, o panorama é totalmente surreal, já que a história das mulheres na vida política brasileira se mistura com a história do próprio país. “Como mulher e parlamentar, reconheço que nossas conquistas foram muitas, mas, infelizmente, ainda existe uma longa estrada a ser percorrida até que a igualdade de gênero seja realidade na esfera política. E para que haja progresso efetivo nesse campo, as ações institucionais precisarão levar em conta outros pontos para formular leis e políticas públicas que de fato transformem essa realidade”, argumenta.
Para além do pequeno espaço – quantitativamente falando – que a mulher tem nas esferas de poder, esse espaço, muitas vezes, ainda é desrespeitado, como mostra o episódio no STF. Nesse caso, Goretti acredita que a relação é de pura proporcionalidade. “O fato de sermos minoria propicia esses desrespeitos”, diz.
ATUAÇÃO
De acordo com Goretti Reis, essas situações pedem cautela, já que no ambiente político há o calor da emoção, tão presente nos discursos e que varia conforme a posição de cada um. “A depender do momento, alguns colegas chegam ao extremismo, causando a agressão verbal, que necessita de resposta e defesa imediatas, com firmeza e sensatez, contra uma situação pobre e mesquinha”, relata.
Mas nem sempre é assim. “Minha relação com meus colegas parlamentares é bem saudável e fundamentada no respeito. Há momentos de trabalho e de pronunciamentos calorosos, já me senti desrespeitada pela colocação de algumas palavras, mas no dia a dia, seja no trabalho ou fora dele, construímos um conviver com muita cautela e respeito. Atuo pautada na ética e na verdade, com isso, o respeito é consequência”, afirma a parlamentar.
Quem também já sofreu esse preconceito na pele foi a vereadora Emília Corrêa. Ela está em seu primeiro mandato e tem tido uma atuação de destaque como opositora da gestão do prefeito Edvaldo Nogueira, o que, incontestavelmente, a elevou ao posto de persona non grata entre os governistas. “E em vez de criticarem a função, levam para o lado pessoal, ofendem a honra da mulher”, comenta Emília. Ela já teve alguns embates com o líder da situação, vereador Antônio Bittencourt, e é a ele que está se referindo.
SOFRENDO NA PELE
“Passei por uma situação semelhante, com alguns colegas vereadores, inclusive o líder do prefeito. Ele acabou me desrespeitando, não no mandato, mas na pessoa. Foi bastante ofensivo, mas adotei uma postura de não me intimidar e de me fazer respeitada. Foi uma lição e um aprendizado para todos”, conta Emília.
Para a vereadora Emília, esse tipo de ofensa e de comportamento revela o caráter do ofensor. “Há muito machismo, sim, seja velado ou declarado. Isso impede que o discurso vire realidade. Os homens políticos discursam sobre empoderamento feminino, mas na prática colocam dificuldades e não acreditam no potencial das mulheres”, critica.
Nesse ambiente político, segundo ela, as mulheres são desrespeitadas, ofendidas, intimidadas e precisam estar preparadas emocional e psicologicamente. E há como estar preparada para isso? “Vai do perfil. Se estou com a fala, eles têm que respeitar. Do contrário, peço ordem no plenário. É isso que a gente tem que fazer. Não é fácil, mas é possível”, destaca.
A deputada Sílvia Fontes garante nunca ter passado por situação semelhante. “A visão machista ainda está totalmente embrenhada na sociedade. Estou lendo sobre o assunto e alguns países estão muito aquém do que conquistamos no Brasil. Não estamos perfeitos, mas também é interessante olhar para fora e ver que há situações piores. Nunca me senti cerceada em nenhuma atividade parlamentar na Alese. É uma assembleia onde a maioria é homem, mas são conscientes, modernos, sabem que o espaço é para todos”, assegura.
Para Sílvia Fontes, é preciso combater o machismo dentro de casa e não apenas fora dela, quando se entra em contato com a sociedade. “É inadmissível que o filho homem tenha, por exemplo, uma mesada maior do que a menina, caso tenham a mesma faixa etária; que os serviços domésticos sejam apenas de responsabilidade das meninas, etc. Quanto mais a gente reproduz isso dentro casa, mais a gente faz com que a sociedade reproduza”, avalia.
TRÊS PODERES
Vale lembrar que, no Judiciário, a presença de mulheres é mais comum e chega a ser maior do que a de homens – a prova de que não se trata apenas de quantidade. Para Emília, isso acontece porque, para ingressar no Judiciário, a mulher depende exclusivamente dela. “E ela é capaz”, ressalta. Já no Legislativo e no Executivo, essa presença depende de outras pessoas.
“No cenário político, dependemos do voto do povo, e aí a sociedade revela o quão machista ainda é. Quantas mulheres são eleitas? Precisou alterar a lei para ver se o número chega perto do recomendável e nem assim chega”, reconhece.
Para a advogada Valdilene Oliveira Martins, todas essas situações acontecem porque, culturalmente, instalou-se uma suposta supremacia masculina “E, e por causa dela, o âmbito público sempre foi ocupado por homens. A presença de mulheres nesses setores sempre foi uma coisa pontual. E isso agora está mudando”, opina Valdilene.
NÃO É COMPETIÇÃO
Na opinião da advogada, os homens se sentem ameaçados, como se, ao ocupar esses espaços, as mulheres estivessem tomando o lugar deles. Mas não é isso. “Para eles, 100% do espaço é deles. E não á assim: 50% são nossos. Então não estamos tomando o espaço deles e sim ocupando o nosso”, ressalta. Aliás, ela acredita que essa visão deve ser clara para ambos os gêneros. “Nós, mulheres, somos criadas para ver o mundo pela visão masculina”, justifica.
Maria da Pureza Sobrinha, da Coordenação da União Brasileira de Mulheres em Sergipe, concorda. “Não conheço a afirmação da Presidente do STF, mas compreendendo que nossa sociedade é patriarcal-machista. Os homens sentem-se ameaçados com a presença da mulher em determinados espaços, principalmente nas esferas superiores de poder de decisão política mais cobiçadas, a exemplo dos Governos, Congresso Nacional e Tribunais”, analisa Pureza.
Segundo Valdilene, a postura das mulheres deve ser de enfrentamento, como a da ministra. Mesmo em situações cotidianas. “Falando da minha realidade, por exemplo, é raro ter mulheres em posições de destaque nos eventos da própria OAB. Quem está na mesa são sempre os homens. De vez em quando, tem uma ou duas mulheres”, comenta.