Saiu no site AZ MINA:
Joguei na cara dele que era crime. Ele respondeu que crime seria se ele publicasse em algum lugar’
O Divã de hoje é anônimo.
“O ano dos meus sonhos começou. Aos 24 anos, saí do emprego que amava para estudar por um ano fora do país. Mudei-me para Londres, deixei para trás família, amigos, um amor que nascia, a estabilidade, o conhecido, o seguro. Por aqui, fiz muitas amizades.
Também amadureci em alguns aspectos, me permitindo que eu me arriscasse mais e puxasse papo com desconhecidos. Mas claro que nem tudo são flores. E, nesses momentos, as pessoas daqui e do Brasil foram essenciais para superar a solidão, as incertezas, a insegurança no meu trabalho acadêmico…Foram apenas alguns meses por enquanto, mas já me sinto em casa.
Apesar de ter passado grande parte da minha vida amorosa em relacionamentos monogâmicos, nos momentos (como o que vivo agora) em que estou solteira, sou bastante livre neste aspecto. Não tenho problema em ficar com pessoas desconhecidas na balada. Tampouco em dormir com elas na noite em que as conheço. Mas uma mulher sexualmente livre incomoda a sociedade patriarcal.
Em janeiro passei alguns dias em Portugal. Em um hostel em Lisboa, conheci um cara. Brasileiro, mais velho do que eu, curtia vinhos e música, culto, viajado. Era de São Paulo, como eu; morava em Londres, como eu; estava passeando em Lisboa, como eu. Diversos pontos em comum, uma conversa boa, algumas cervejas. Um beijo. Mas eu tinha bebido um pouco demais e, no ambiente compartilhado do hostel, não me senti à vontade para fazer nada mais do que isso. Voltei ao meu quarto e dormi.
No dia seguinte, ele apareceu, todo fofo, no café da manhã. Me cumprimentou com um beijo, me chamou de linda, serviu suco, perguntou sobre os planos para o dia e disse que me levaria em uns lugares legais de Lisboa. E eu pensei: “por que não?”
Na volta, próximo ao horário do almoço, o ônibus estava cheio e eu sentei em seu colo, para que um carrinho de bebê passasse. Resolvi ficar lá mesmo pelo resto do trajeto e começamos a nos provocar mutuamente.
Resolvemos pular o almoço e ir para o hostel, que na teoria estaria mais vazio àquela hora, resolver o assunto que estava pendente desde a noite anterior. Eu já havia feito meu check out naquela manhã, pois meu voo de volta para Londres partia naquela tarde.
Então fomos para o quarto dele e transamos na cama de cima de uma das beliches, num cômodo com outras três beliches. Ninguém estava lá, mas ocasionalmente alguém entrava. Parávamos e ficávamos conversando baixinho ou fingíamos que dormíamos.
Em determinado momento, quando ele já havia gozado, uma menina entrou e não pareceu que tinha planos de sair tão cedo. Então eu me vesti, mas deixei claro que estava frustrada e que queria continuar.
Depois de alguns minutos, quando eu já estava quase levantando para voltar a explorar a cidade, ele disse que poderíamos terminar no banheiro. Fomos ate lá e, com dificuldades para encaixar a posição, continuamos. E foi bem bom. Não gozei. Ele gozou novamente e parou abruptamente. Ou seja, poderia ter sido muito melhor.
Voltei para Londres naquela tarde e continuamos nos falando. No entanto, algo havia me incomodado. Não sabia bem o que era, mas não queria voltar a ver aquele homem. Parecia totalmente sem razão, já que ele me tratou muito bem no curto tempo que passamos juntos.
Quando ele voltou para Londres e me chamou para sair, respondi que precisava passar um tempo sozinha, focar no acadêmico, essas coisas. Ele respondeu tranquilamente, disse que, se eu mudasse ideia, para entrar em contato. Até aí, tudo ótimo! Um cara que sabe ouvir um ‘não’, finalmente! Tudo isso ocorreu em janeiro e não voltamos a nos falar.
Em meados de abril, recebi uma mensagem pelo WhatsApp de um número britânico que não conhecia. Era apenas um ‘hey’. Respondi o oi e perguntei quem era, em inglês. A resposta chegou ainda em inglês, dizendo que era o cara que eu tinha dado uma bota em Lisboa. Respondi, já em português e com seu nome, por tê-lo reconhecido, que nunca lhe dei uma bota e que, se isso aconteceu, não foi em Lisboa.
O papo continuou, ele me contou suas novidades, mas sempre insinuando estar interessado em mim. Confesso que não deixei claro minha falta de interesse em vê-lo novamente. Até dei uma certa corda, para não chatear o rapaz que nunca foi nada mais do que muito legal comigo.
Quando o papo começou a esfriar, ele me mandou um ‘seminude’, sem convite, sem consenso. Não gostei, e nem ao menos respondi. Ele mandou outra mensagem, falando da foto, como se esperasse uma resposta à altura, ou seja, uma foto minha. Novamente ignorei e fui dormir.
Na manhã seguinte, uma nova mensagem dele, dizendo que havia gravado um vídeo especialmente para mim, se poderia me enviar. Minha resposta foi exatamente esta: ‘Não. Não queria nem a foto. Pelo menos perguntou antes de mandar o vídeo. Cara, esquece… Nem tô entendendo o que é que vc quer. Reaparece do nada, de outro país e manda um ‘seminude’. Fui olhar de novo nossas conversas, para ver quando foi que te dei essa liberdade (e, mesmo que tivesse dado, teria sido há meses!) e vi que vc me excluiu do facebook. Não tô entendendo p*rra nenhuma. Faz assim: me esquece, beleza?’.
Achei que ele ficaria constrangido e que nem responderia. Pelo contrário. Primeiro ele respondeu com um monossilábico ‘ok’. Depois, com a mensagem que me assombra desde então: ‘é q aquilo q agente fez no hostel tá filmado, no meu celular….só queria te mandar’.
A feminista em mim gritou de ódio. A mulher em mim ensinada a temer, especialmente um homem, chorou desamparada. Estava num lugar e momento que não permitiam que eu desse vazão nem ao grito nem ao choro. Então só me senti desesperada, sem ideia de como reagir.
Joguei na cara dele que aquilo era crime. Ele respondeu que crime seria se ele publicasse em algum lugar, ressaltou que não me forçou a fazer nada, que tudo havia sido consensual, disse nunca ter mostrado o vídeo para ninguém e completou dizendo que achou que eu gostaria de ver.
Ainda tentou se desresponsabilizar, dizendo que a câmera do celular ficou ligada, como que por acaso. E que havia falado com o pai dele – que deve estar muito orgulhoso da cria, imagino eu –, aparentemente um advogado, que disse que ‘não dá nada’, querendo dizer que eu poderia tentar causar na vida dele, mas que não surtiria muito efeito. O mais triste: ele tinha toda a razão.
Antes mesmo de receber essa resposta, já estava falando com duas amigas próximas. Me controlando para não chorar, gritar, vomitar ou fazer os três ao mesmo tempo. Tentando voltar a respirar. Mesmo agora, escrevendo sobre isso, o ódio que me toma é algo difícil de descrever. Com o aconselhamento delas, resolvi mandar uma última mensagem lacradora e bloqueá-lo no WhatsApp, Facebook e Instagram – sendo que, nos últimos dois, nem éramos amigos.
O lacre foi: ‘Ilegal ou não. Desprezível. Não volte a me procurar jamais. Aproveite o vídeo pra bater bastante punheta que deve ser a única coisa próxima a sexo que vc faz, já que nem me fazer gozar vc conseguiu’.
A conversa acabou aqui – eu a fiz acabar. Ele me tirou a escolha do que fazer com meu corpo, mas ao menos pude escolher não entrar no jogo dele. Não ficar implorando pelo vídeo ou para que ele nada fizesse com ele. O forcei para fora da minha vida, mesmo que ele ainda tenha imagens minhas que ele pode revisitar quando quiser e partilhar com quem ele bem entender.
Honestamente, achei que a situação como um todo também morreria aí. Mas nada é bem como imaginamos. Naquela noite, acordei de madrugada algumas vezes. Me sentia vigiada. Queria olhar o horário no celular, mas não conseguia. Estava paralisada com medo de encontrar uma mensagem ameaçadora dele, ou de descobrir o vídeo online de alguma forma. No dia seguinte, dois ataques de pânico. A vontade de sumir do mundo, a sensação de que não ia conseguir respirar novamente.
Me sentia invadida. O cara se achou no direito de gravar uma imagem minha, do meu corpo! Ele resolveu que, já que eu partilhei meu corpo com ele por aqueles poucos minutos no banheiro de um hostel, que ele poderia levar com ele uma lembrança? Me parece um absurdo tão grande. E me rasgou por dentro de uma forma que eu não esperava.
Até hoje, tremo se recebo mensagem de um número desconhecido, morro de aflição quando me lembro que tenho amigos em comum com esse homem e que eles poderiam ver o vídeo de alguma forma. Até hoje fico imaginando (e desejando que jamais aconteça) como seria encontrá-lo por acaso. Até hoje, não me envolvi intimamente com ninguém.
As reflexões feministas voltaram a aflorar. Eu não tinha nada do que me envergonhar. Se por acaso esse vídeo vazasse, o que isso revelaria de mim para as pessoas? Que faço sexo, como a grande maioria dos adultos do mundo. Tentei me tranquilizar quanto a isso e me lembrar constantemente de que quem deveria se sentir envergonhado na situação era ele.
Sei que esse é um devaneio um tanto quanto utópico. Sei que o sexo (tanto fazê-lo quanto não fazê-lo) é constantemente usado contra as mulheres. Sei que muita gente consideraria que era minha culpa que eu estava ali sendo exposta, por levar uma vida ‘promíscua’. Mas me recuso a vestir a carapuça de culpada. A única coisa que fiz foi fazer sexo com um desconhecido. E ele fez exatamente a mesma coisa.
Até este momento, o que tem me levado adiante, é o apoio das maravilhosas mulheres que tenho na minha vida. Mensagens de revolta, solidariedade e sororidade, apoio incondicional, perguntas sinceras: ‘Você tá precisando de alguma coisa? Como posso te ajudar?’.
Toda essa experiência me trouxe muitos questionamentos e dúvidas, principalmente quanto ao modo com que nos relacionamos com as pessoas. Mas também trouxe algumas poucas certezas: de fato, juntas somos mais fortes. E, por último, mas, não menos importante, o ano dos meus sonhos ainda não acabou, e não será a atitude machista de um homem que vai transformá-lo em um pesadelo.”
Veja publicação original: ‘Transei com um desconhecido no banheiro e ele filmou tudo, sem eu saber’