Saiu no site BLOGUEIRAS FEMINISTAS
Por: Monique Prada.
Foi na Suméria, por volta do ano 2.000 a.C. que surgiram as primeiras leis separando as “boas” das “más” mulheres — fundamento do estigma de puta, essa divisão já se via presente bem antes disso. No entanto, as leis passam a oficializar o desejo da sociedade à época. Precisamos lembrar que ao homem pertenciam a mulher/esposa, e os filhos gerados daquela relação, enquanto a prostituta a ninguém pertencia — e é deste não pertencer também que surge o estigma contra as crianças geradas fora das relações de matrimônio, amaldiçoadas em textos bíblicos até sua décima geração.
Ainda que as mulheres possam ocupar na sociedade contemporânea outros espaços que não o de esposa ou prostituta, podendo exercer uma série de atividades que as tornaram em certo sentido e até certo ponto livres do jugo masculino, vamos perceber que essa linha tênue que separa as mulheres segue existindo, firme e forte. O estigma de puta, renovado a cada geração, delimitando os espaços podemos ocupar sem que nos coloquemos em risco de violência física e desgraça pública.
No entanto, a verdade é que nem ser esposa nem ser uma prostituta garantem às mulheres alguma felicidade e segurança na sociedade em que vivemos. Mas são situações e espaços possíveis.
A sociedade louva o matrimônio como o mais nobre lugar a ser ocupado por uma mulher.
A sociedade ama a prostituição e odeia as prostitutas — e apresenta este lugar, o de ser prostituta nesta sociedade, como o pior dos lugares que pode ser ocupado por uma mulher — e para tornar este lugar ainda pior, violenta diariamente aquelas que a exercem, e principalmente aquelas que a exercem e ousam se revelar.
O matrimônio, e mesmo o conceito de “amor” na sociedade patriarcal capitalista, tem sido historicamente usado para tomar o trabalho das mulheres sem que por isso recebam nenhum tipo de pagamento – o cuidar, o agradar, o cozinhar “por amor”, não só para o marido mas para a família toda, dispensa remuneração. A esposa é uma serviçal a quem não se paga, ainda que não o queiramos admitir.
O trabalho puramente sexual dentro da instituição “casamento” é tomado dessa mulher pelo marido normalmente apenas por um período curto. Em seguida, o trabalho sexual da esposa costuma ser alçado à condição de trabalho reprodutivo, passando o trabalho exclusivamente sexual a ser “terceirizado”, como diz Indianara Siqueira. Ou seja, passa a ser realizado nesta relação por amantes ou prostitutas. Muito raramente essa “terceirização” é uma escolha da esposa, ou acontece com sua concordância.
Mulheres também gostam de sexo, esposas são as mulheres que acabam privadas de sexo nessas relações de monogamia unilateral, que é o “acordo” mais presente nos casamentos: o homem que sai em busca de sexo “às escondidas” enquanto a mulher cuida da casa, dos rebentos e o espera com o jantar servido. Podemos também perceber em alguns discursos que não é socialmente bem aceito que um homem deseje a mesma mulher por muito tempo. É socialmente aceitável e mesmo desejável que o sexo entre marido e mulher “esfrie” com o tempo, ninguém estranha se marido e esposa dizem que não fazem mais sexo entre si.
O casamento, nos moldes em que existe hoje, é desastroso para a vida das mulheres.
Em contrapartida nós, enquanto prostitutas, nossa tendência não raro é a de um discurso raso, de defesa da ideia de que a vida e a sexualidade acontecem de modo libertário dentro do prostíbulo — o que tampouco condiz com a realidade. Sujeitas a cachês mirrados, horário a cumprir, precisando mostrar um comportamento em certo sentido exemplar, e muitas restrições é o que temos, e isso sem falar do forte estigma, que incita e legitima a violência contra as trabalhadoras sexuais.
A vida das mulheres nessa sociedade é cheia de privações e responsabilidades pesadas, estamos todo o tempo sujeitas a sofrer violências diversas. Todas as mulheres.
Algumas mulheres, as que não precisam cobrar por sexo, se jogam contra mim como se precisassem provar a si mesmas que suas escolhas foram melhores do que as minhas, que estão mais seguras do que eu em seus espaços. Eu me defendo como posso.
Nos acusam, se falamos de temas sensíveis, de incentivar abusos — o que não é real, nós alertamos para abusos que estão acontecendo dentro dos lares, e não fora deles, e se volta e meia podemos alertar é apenas por que acabamos tendo acesso à confissões sórdidas vindas das bocas daqueles com quem as outras mulheres, as que não cobram por sexo, dividem a cama de dormir. No entanto, é a nós que culpam por trazer essas questões à luz, o que se deseja e não pode ser contado, aquilo que não pode ser falado.
Na minha vida, eu já fui esposa e prostituta por tempo mais do que suficiente para poder falar sobre ambos os espaços, sobre ambos os papéis. São papéis possíveis, embora não obrigatórios, às mulheres em nossa sociedade.
É preciso garantir direitos às mulheres, é preciso lutar pelas vidas das mulheres.
É preciso romper com os estigmas, lembrar que mulheres divorciadas por exemplo sofriam estigma quase tão pesado quanto o que sofrem as prostitutas, e isso não faz muito tempo.
Acaso uma mulher deixa de ser uma mulher quando se divorcia?
Acaso uma mulher deixa de ser uma mulher quando passa a cobrar por sexo?
O cliente monstruoso e pervertido, segundo a visão de algumas, que nos procura, é na cama de casal de seu lar que descansa. É um homem como os outros. Não estamos em maior ou menor risco que as esposas quando temos sexo com eles.
Mas existe algo que nos une, a nós, mulheres, para além de volta e meia dividirmos os mesmos homens. Vamos falar sobre isso?
Temos falado de sexo e comportamento, temos falado de estigma e violência, de machismo e opressões. E seguiremos falando, eu não me importo que seja desconfortável para algumas pessoas ouvir o que falamos. Gerar desconforto às vezes é necessário.
Autora Monique Prada é ativista incansável pelo direitos das putas e nos horas vagas também é diva. É presidenta da CUTS – Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais. Esse texto foi publicado originalmente em seu perfil pessoal do Facebook em 07/06/2017.
Imagem: Outubro/2014. Miss Prostituta BH. Foto de Lucas Buzatti/Vice.
Veja publicação original: Nem ser esposa nem ser prostituta garante às mulheres alguma felicidade e segurança