HOME

Home

‘As pessoas acham que a agressão acontece porque a mulher está em pecado’, diz evangélica que sofreu violência doméstica

Saiu no site CORREIO / BAHIA

Por: Thais Borges

 

A doméstica Rute*, 54 anos, passou 12 anos com seu agressor, sofrendo calada, com medo do que a família e a os irmãos da igreja pensariam.

A doméstica Rute*, 54 anos, passou 12 anos com seu agressor. Foram 12 anos sofrendo calada, com medo do que a família e a os irmãos da igreja pensariam.

Hoje, ela é pastora de uma igreja batista e vive com outro marido. Ao CORREIO, ela conta como se libertou de um relacionamento abusivo. “Nem sempre é só oração (que resolve). Tem que ter ação também”.

***

“Já passei por violência, minha filha, e eu tenho um filho que até hoje a gente não se entende bem por causa disso. Na época, ele também foi agredido. Ele me culpa porque achava que eu não defendia ele.

Vou completar 17 anos sendo evangélica.

Não fui sempre dessa igreja, mas hoje eu sou pastora de uma Igreja Batista. Eu conheci Jesus através desse marido que eu tinha. Na verdade, eu não era casada, eu morava com ele. Já tinha três filhos, mas a gente se gostou e foi morar junto.

Sofrendo em silêncio: evangélicas são as que mais buscam o Loreta Valadares por violência doméstica

***

Ele falava de Jesus para mim. Eu me animei e terminei aceitando. Mas eu aceitei e ele não. Ficou no mundo. Curtia com mulheres, bebia e depois, com o tempo, descobri que até droga ele usava. Quando eu morava com ele, eu não sabia das drogas.

Ele chegava muito violento em casa. Era muito agressivo, tudo era com grosseria. Era um ‘pega pra capá’ dentro de casa. Eu estava dormindo, ele vinha e puxava meus cabelos. Apesar de estar na rua com várias, ele achava que na hora que chegasse em casa, eu tinha que servir a ele. Eu não podia gritar porque minha mãe morava embaixo e meus filhos dormiam no andar de cima. Eu tinha que ter cuidado com meu filho adolescente e ficava calada.

Fui bruscamente violentada várias vezes. Por mil e uma vezes, sofri agressão, tapa na cara, mas não me separava. Não era porque dependia dele financeiramente, mas porque eu moro num bairro extremamente perigoso, a Santa Cruz. E lá, naquela época, as mulheres que não tinham homens eram muito assediadas. Tudo isso eu imaginava. Ficar só, criar filho sozinha…

Com 15 anos, meu filho se revoltou contra mim. Como ele (o agressor) tratava os meninos mal, meu filho achava que eu não os defendia. Mas eu sofria as agressões também, e você sabe que adolescente não é fácil. Adolescente também é grosso, quer levar nos peitos. Ele dizia que eu ficava do lado dele quando o marido não estava, mas o problema é que depois eu é que sofria as consequências.

***

Mas graças a Deus, eu me separei dele. Levei 12 anos para isso, sendo quase uns 10 anos de muita agonia. No meu caso, a religião não me obrigava a continuar com ele, mas quando você tem um homem violento dentro de casa, que te ameaça na rua, e diz que se você largar, vai lhe matar, você tem medo. Ele me espancava na rua. Tomei uma bofetada dele na rua porque alguém disse a ele que ‘eu estava com galera’.

Na realidade, as pessoas não te defendem, não intervém. Minha mãe dizia que, se eu continuasse, ele ia acabar me matando, mas ninguém opinava com ele por perto. Todo mundo se calava porque a maioria sabia que ele usava drogas e eu não sabia. Achava que ele só bebia cerveja.

***

Eu pedia oração às pessoas mas não falava o que passava. Pedia oração pela bebida dele, para que Deus viesse libertar, pedia ajuda a várias pessoas. Quando encontravam ele, muitas falavam de Jesus. Mas eu terminei me separando porque não vi mudança. A igreja até apoia, mas tem mulheres que acham que a culpa é nossa. Tem homem que ficam revoltados quando sabe de uma situação dessa mas, infelizmente, tem mulheres evangélicas que acham que a culpa é daquela mulher, que é aconteceu porque a mulher está em pecado. A mulher evangélica é muito mal vista, tudo a culpa é dela.

Era a vergonha de você estar com aquela pessoa e depois ficar mal falada. Quando eu me separei dele, levou um tempo e ele aceitou Jesus. Mas na verdade, ele não tinha aceitado de corpo e alma, porque ele era segurança e teve um assalto no local onde ele trabalhava e ele terminou abatendo alguém. Mas ele também foi atingido e, ali, veio descobrir que estava muito doente, com problema no coração, síndrome do pânico.

Nesse período, eu já estava separada dele, mas como não tinha ninguém para cuidar dele, ele voltou para minha casa. Todo mundo achava que era minha obrigação cuidar dele. Quando você é evangélica, as pessoas acham que sua obrigação não acaba nunca.

Meus filhos ficaram revoltados, mas ele estava realmente muito doente. Depois, graças a Deus, se recuperou e voltou para a família dele. Eu glorifico a Deus porque eu passei por essa e nunca mais hei de passar, porque, além da violência física, tem a violência verbal que vai abatendo a sua alma. É como se você não fosse capaz de arrumar ninguém, porque aquelas palavras são terríveis, te botam para baixo.

Graças a Deus, consegui superar essa situação, mas tenho visto que tem algumas irmãs na igreja que são mulheres abatidas, que têm algum problema, mas pelo fato de serem evangélicas, não contam. E eu lembro de mim, que não gritava para não chamar atenção de minha mãe, mas várias vezes fui violentada por ele.

‘Ela acreditava que Deus ia restaurar o casamento’, conta nora de aposentada morta pelo marido

***

Sofri abuso e tinha que fazer o que ele queria debaixo de tapa. Você, no outro dia, muda a roupa e vai para igreja como se nada tivesse acontecido, porque não vai ter coragem de contar isso a ninguém.

Fui na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) quando ele veio para minha casa, já separado, e deram 24 horas para ele sair da minha casa. Eu denunciei porque ele não queria sair quando eu já não tinha nada com ele. Dizia que fez a reforma na entrada da casa e dizia que tinha direito a morar por isso, mas a casa já existia quando ele foi morar. O homem quando mora com a mulher acha que tem direito na casa porque ele fez alguma coisa quando, na verdade, a gente sabe que não é isso.

Era terrível. Ele me perseguia mesmo. Às vezes, eu estava na igreja, e quando eu pensava que não, ele estava lá fora me vigiando. Conversei com o pastor que tinha na época e o pastor chamou ele para conversar. Mas só serviu para ele se voltar mais ainda para mim. Ele dizia que o pastor estava de olho em mim, por isso estava querendo me defender.

Ele gostava de mim, mas como usava droga, parece que surtava, parecia que todo mundo era inimigo dele. Ele ficava alucinado, pedia perdão no outro dia, mas eu estava com os hematomas lá. Até apanhar de cinto eu já apanhei, minha filha. Uma vez ele achou que eu estava dando ousadia a um irmão (da igreja) e eu não sabia que ele estava me observando do lado de fora. Quando eu cheguei em casa, ele estava já com o cinto para me bater. Tomei uma surra com o cinto, calada.

Acredito que hoje em dia tem muitas mulheres que sofrem isso. Existe a vergonha porque nenhuma mulher fica satisfeita em falar sobre isso. É uma coisa terrível, uma calamidade.

‘Falta de engajamento das igrejas evangélicas diante da violência doméstica’, diz pesquisadora

***

Já tem uns sete anos que isso aconteceu. Hoje, eu estou casada há um ano e seis meses. Graças a Deus, meu marido é da paz, é evangélico. A gente aprende que a gente ainda pode ter chance de ser feliz.

Nunca fui na delegacia (durante o casamento) por medo, porque quando eu tomei o tapa no rosto, todo mundo dizia que era caso de polícia. No dia, eu vinha andando, não estava fazendo nada e, de repente, ele voou em mim e me deu aquele tapa. Eu não estava esperando e a minha família ficou revoltada, ficou contra mim porque eu não denunciei.

Tive medo do que a igreja poderia pensar. Tanto que ninguém na igreja nem soube porque eu nem comentei. O medo trabalha na nossa vida na forma de vergonha. ‘Ah, eu sou evangélica, o que as pessoas vão falar?’. A igreja nos rotula com a questão de que, se isso está acontecendo é porque você está em pecado.

Isso aumenta nosso problema porque a partir do momento que a gente se cala, a gente dá oportunidade para que o nosso agressor se fortaleça. A partir do momento que aquele maus-tratos começam, você tem que seguir seu caminho. Eu hoje tenho esse lema comigo.

Com meu novo marido, eu digo que a gente casou até que a morte nos separe, mas no dia que não der, vai cada um para seu lado. Me agredir, não aceito mais. Conheci esse lado terrível e não quero conhecer de novo.

Meu filho está com 32 anos e ainda hoje, quando a gente se aborrece, ele joga na minha cara as situações que passamos. (O agressor) Não só trouxe problemas para minha vida como trouxe para a vida de meu filho. É uma coisa que a gente tem que ter muita vigilância, mas infelizmente a sociedade nos oprime muito nessa questão e você não pode desabafar nessa situação.

A mulher chega, fala para o pastor e para a pastora, mas nem sempre o pastor está preparado para agir. Vai falar que você tem que orar, perseverar, enquanto isso você está sofrendo as consequências, mas continua com a mesma opinião do pastor. Enquanto isso, você está dentro de casa sofrendo as agressões. Nem sempre é só oração. Tem que ter ação também.

Quando as pessoas vão ver, já é tarde. Graças a Deus, na igreja que eu congrego, não chega no nosso conhecimento de mulheres sendo maltratadas. Agora, se há alguém que está sendo, não fala porque tem a vergonha. ‘Como vou dizer que estou passando por isso com fulano?’.

Tudo isso tem a ver com autoestima da mulher porque quando uma mulher é agredida, a autoestima vai para o pé. É muito terrível, é muito triste, mas infelizmente acontece. Tenho certeza de que dentro das igrejas e por aí afora tem mulheres sofrendo todo tipo de abuso, principalmente o verbal”.

*Nome fictício

 

 

Veja publicação original: ‘As pessoas acham que a agressão acontece porque a mulher está em pecado’, diz evangélica que sofreu violência doméstica

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Compartilhe

Compartilhar no facebook
Facebook
Compartilhar no twitter
Twitter
Compartilhar no linkedin
LinkedIn

Veja também

HOME