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“Você vai se arrepender de levantar a mão pra mim.” O refrão de “Maria da Vila Matilde”, cantado mundo afora, faz parte de “A Mulher do Fim do Mundo”, álbum que marcou a volta de Elza Soares aos palcos em 2015 e ganhou um Grammy Latino. A canção que o sambista paulistano Douglas Germano fez inspirado no próprio pai, que batia na mãe, virou grito de guerra por abordar um assunto atemporal na perspectiva de seu tempo. Na voz de uma senhora de 80 anos que muito apanhou na vida, conta a história de uma mulher agredida que aciona o Ligue 180. O serviço, do governo federal, nasceu como fonte de informação em 2005, ganhou o amparo da Lei Maria da Penha, que entrou em vigor no ano seguinte, e tornou-se um disque-denúncia em 2014. Há dois anos, foi sancionada ainda a lei que torna crime hediondo o fato de uma mulher ser assassinada basicamente em razão de ser mulher. Nunca se falou e se fez tanto como neste tempo para que as mulheres conheçam, ampliem e façam valer seus direitos contra a violência de gênero – e, claro, ainda há muito a fazer.
DENTRO DA RODA
Mas hoje, ao contrário de antes, “você vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. A lei, diferentemente do poeta, sugere que seria mais prudente uma interrogação: você vai se arrepender de levantar a mão pra mim?
Reconhecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) como uma das melhores legislações de enfrentamento à violência contra as mulheres do mundo, a Lei 11.340/2006 completou uma década ano passado protegendo as vítimas, mas sem deixar de olhar para os agressores – vale lembrar que Maria da Penha é o nome da farmacêutica cearense que lutou pela condenação do ex-marido depois de duas tentativas de homicídio.
Um dos avanços da legislação é entender que, dentro de circunstâncias específicas, homens agressores podem refletir, mudar e não reincidir, sem deixar de pagar pelo cometido, e ainda assim ser possível todos ganharem com isso. Arrepender-se, segundo o Dicionário Houaiss, é “lamentar o mal cometido”, “sofrer pela falta praticada”, ou ainda “lamentar ato ou procedimento do passado”. Ou seja, um ato de natureza íntima. Mas a Lei Maria da Penha, em seu artigo 35, inciso V, determina a criação e promoção de centros de educação e de reabilitação para os agressores, entendendo que, por meio da reflexão e do diálogo, é possível desmontar o ideário machista que muitos carregam desde a infância e, dessa forma, servir de instrumento para diminuir a violência contra as mulheres.
Antes de irmos em frente, nunca é demais lembrar que a função de julgar estes homens não é dos cursos nem desta reportagem, mas exclusivamente da Justiça, que já cumpre seu papel nos casos aqui relatados.
“A punição sem educação não traz mudança de comportamento, basta olhar para o nosso sistema prisional.” Quem afirma é Leandro Feitosa Andrade, psicólogo e um dos líderes do grupo Masculinidades, que reúne cerca de 15 homens toda segunda-feira em um encontro de duas horas num espaço dentro do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em Pinheiros, zona oeste paulistana. O chamado “grupo reflexivo de homens” começou em 2006, na esteira da Lei Maria da Penha, e passou a habitar o espaço do coletivo em 2009. Uma das diretoras do Sexualidade e Saúde, a psicóloga Paula Prates, defendeu em 2013 sua tese de doutorado “A pena que vale a pena: alcances e limites de grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher”, que fala justamente sobre esse projeto.
VETERANOS E CALOUROS
O TAB esteve no fim de maio em três dessas reuniões. Os homens sentavam em círculo numa sala no fundo da casa. Todos respondiam em diferentes níveis para a Justiça, e a participação em 16 encontros, determinada pelo juiz, era uma forma de atenuar a pena que ainda estava para ser determinada. Entre os temas na pauta, lei, violência, sexualidade, estereótipos, mas principalmente a masculinidade. “Nosso roteiro é menos fechado. Se um homem chega e propõe discutir um problema que teve com a companheira na semana anterior, a gente abre para ele e usa aquilo como tema da reunião”, conta Andrade. O clima de liberdade deixa os homens à vontade. Às vezes um pouco à vontade demais. Os chamados facilitadores, a equipe que trabalha coordenando a dinâmica, precisam muitas vezes trazer a conversa de volta ao seu objetivo. Mas este é um bom sinal.
Entre os participantes, um rapaz em situação de rua chama a atenção pelo olhar carregado e desafiador. Em um dos encontros, ele contou a história de desavença com a mãe que o levou até lá, e seu arrependimento foi tocante. Lá também apareceu o jovem que, sem perceber a ironia, garantiu que ia tomar satisfações com o pai do menino que mexeu com a filha dele na pré-escola. Ainda surgiu, no fim, um jovem do interior do Nordeste que se dividiu entre a mulher e a amante por cerca de um ano e meio, até ser descoberto. A interação entre eles é o que faz o curso avançar.
“Como o grupo é cíclico, são os homens antigos que recebem os novos homens. Aquele que está chegando pode ver no outro como ele vai poder melhorar lá dentro, e ao mesmo tempo aquele que está encerrando sua participação pode ver como ele era ao chegar e avaliar a própria mudança”, conta o psicólogo.
Andrade lidera o grupo de Pinheiros desde 2009. Antes, trabalhou dez anos no atendimento a mulheres – parte delas ligadas à prostituição. Começou a se dedicar aos homens em 2006, em São Caetano do Sul, quando a Lei Maria da Penha referendou os grupos de reflexão para agressores. Na região do ABC, Andrade trabalhou com o filósofo Sérgio Barbosa, que já tinha dez anos de envolvimento no assunto quando a Maria da Penha surgiu. “Eu trabalhava com saúde e sexualidade, Aids, quando percebi que era preciso abordar a violência de gênero, isso no fim dos anos 1990”, conta Barbosa.
Ele é um dos responsáveis pelo Tempo de Despertar, projeto do Ministério Público de São Paulo criado pela promotora Gabriela Manssur que teve três edições em Taboão da Serra (Grande São Paulo) entre 2014 e 2016 e este ano estreou na capital. “Eu trabalhava com o tema havia oito anos, e a violência aumentava, e grande parte dos homens autores de agressão eram reincidentes. Ou seja, não adiantava trabalhar só com as mulheres, era preciso envolver os homens”, conta Gabriela. Nas três turmas de Taboão da Serra, com 30 homens em cada, ela contabilizou 2% de reincidência – a taxa dos que voltavam a cometer violência de gênero era, até então, de 65%.
TENSÃO NO AR
O Tempo de Despertar, em sua primeira versão na capital, promoveu dez encontros, a cada duas semanas, e terminou em julho de 2017. Reuniu cerca de 20 homens em manhãs de terças-feiras alternadas em uma sala do Fórum Regional da Penha, na zona leste – perto da Vila Matilde da canção interpretada por Elza Soares. Foi o mais parecido com uma sala de aula que presenciamos. Não só pela disposição do espaço, mas especialmente pela tensão no ar. Se em Pinheiros eles precisam buscar de volta o rumo da conversa, na Penha é preciso forçar para que ela tome corpo. O ambiente é misto, e as mulheres – juíza, advogada, assistentes, psicólogas, promotora – estão em todas as partes, o que intimida qualquer gracinha. Nas duas aulas que acompanhei, a promotora fez questão de reiterar mais de uma vez sua liderança e autoridade naquele ambiente. Naturalmente, houve mais gente calada do outro lado.
“Ser obrigado a participar de uma atividade nunca é bom. É difícil reconhecer a violência praticada, muitos vão falar que apenas reagiram a uma situação”, explica Barbosa. “Mas o importante é que aquele homem está numa situação de violência e precisa sair. Eu procuro mostrar que não estou interessado no que ele fez, mas no que fará dali em diante”, completa o filósofo. Independentemente da disciplina do ambiente, em todos os grupos a coleção de homens que entram mudos e saem calados é significativa. Alguns estão com a cabeça visivelmente em outro lugar. Outros parecem não concordar com o que estão ouvindo na sala. E há ainda os que não conseguem disfarçar a contrariedade por estar ali.
Na primeira reunião que visitamos na Penha, um homem simplesmente abandonou o encontro no intervalo. Mais tarde, no mesmo encontro, um senhor que até então ficava calado aproveitou a dinâmica em um grupo menor para desabafar sua raiva. E era muita raiva. Segundo ele, o que o levou até lá era uma armação planejada pela sua (ex) esposa, cujo único objetivo era se apoderar do patrimônio que ele havia construído ao longo de uma vida. Dois colegas foram ativos na missão de convencê-lo a olhar para a situação de uma forma mais amena. Dois homens com idades, interesses e histórias completamente diferentes, com duas únicas intercessões: o episódio de violência que os levou até ali e a disposição de contar a própria história e mostrar o rosto aqui.
Edson Souza foi um dos participantes mais ativos do Tempo de Despertar. Mas, ainda que sofresse da mais crônica timidez, ele sabe que sua presença não passa incólume em nenhum ambiente. Detentor de mais de 60 títulos como fisiculturista, entre eles nove campeonatos nacionais, um Mundial e um Arnold Classic, Souza é educador físico e chama a atenção por sua compleição física. Ele me recebeu em sua academia, na Vila Formosa, zona leste paulistana, para falar sobre os motivos que o levaram a estar no Fórum da Penha uma vez a cada duas semanas. Sua história é confusa, mas ele tenta mostrar interesse em mudar, como pode ser visto no vídeo deste TAB.
Na mesma reunião em que conhecemos Edson, um rapaz de 30 anos que aparentava ser mais jovem, de cabelo estilo rastafári e ar tranquilo, e que só havia se manifestado até então uma vez naquela manhã. O artesão Solon de Lucena Cavalcante havia levantado a mão quando a promotora perguntou quem havia sido preso por violência flagrante na sala. Ele havia passado quatro dias na cadeia depois de agredir sua mulher, Jéssica, durante uma crise de ciúmes. Depois de um mês, o casal se reconciliou, mas o processo continuou na Justiça. Semanas depois de receber a reportagem em sua casa, no Jardim Novo Carrão, também na zona leste, onde vive com a mulher e os dois filhos – um deles fruto de um relacionamento anterior de Jéssica, mas ele considera como seu -, Cavalcante ia comparecer a uma nova audiência. E, segundo o advogado havia informado, tudo indicava que ele seria condenado, uma vez que nunca negou a agressão. Sua preocupação maior, no entanto, era não ter de voltar para a cadeia. As mulheres que moveram os processos que levaram Edson e Solon ao Tempo de Despertar foram procuradas pela reportagem, mas não se manifestaram por orientação do Ministério Público.
TODOS CONDENADOS
O artesão paulistano destaca duas atitudes recorrentes entre os homens autuados. Uma, da qual ele é exceção, é a busca por relativizar o ato de violência, seja qual for. É comum ouvir relatos no mínimo pouco críveis, como o de quem, sem querer, esticou o braço e atingiu a companheira, ou que, depois de um dia difícil, segurou a esposa para ela não cair e foi acusado de agressão. Raro é encontrar alguém duramente honesto consigo mesmo sobre os fatos, como Cavalcante. Por outro lado, o que não é nada raro de encontrar é quem tenha, como ele, guardado trauma da experiência na prisão. O relato dos episódios de violência que levaram a serem autuados costumavam sempre ser vagos. Já o relato dos momentos passados na prisão eram sempre riquíssimos em detalhes. Em Pinheiros, esse tornou-se o assunto de uma das reuniões, e o grupo se dividiu ao meio, os que passaram pela cadeia e os que temiam passar.
Mantendo o “eterno retorno” que marca a concepção dos grupos de reflexão, Sérgio Barbosa, um dos responsáveis pelo Tempo de Despertar, trabalhou em Santo André ao lado do psicólogo Flávio Urra na virada do século, e esteve na gênese do que desde 2014 é o projeto E Agora, José?, que reúne cerca de 15 homens todas as quartas-feiras na sede da Polícia Militar da cidade da região do ABC. A peculiaridade do grupo capitaneado por Urra é abrigar apenas homens já condenados, cuja frequência nos encontros serve como substituição da pena decretada pela juíza responsável. “Até hoje passaram por aqui 80 homens. Considerando que cinco abandonaram e 15 estão frequentando atualmente, cerca de 60 homens concluíram os 20 encontros, e a taxa de reincidência é zero”, conta. Dispostos em torno de uma grande mesa central, os homens que ocupavam a sala usavam crachá com o nome, inclusive a equipe de trabalho, o que facilitava a comunicação. Nos três encontros que acompanhamos, foram discutidos estereótipos de gênero e exibidos filmes que inspiraram discussões. “Nas cinco primeiras vindas, o homem permanece resistente. Nos dez encontros seguintes, ele vai mudando, começa um processo de reflexão”, relata Urra.
Uma das surpresas em Santo André foi a exibição do curta-metragem “Acorda, Raimundo… Acorda!”, dirigido por Alfredo Alves, que trata da inversão dos clichês de gênero. O ator José Mayer faz uma ponta, o que rendeu um dos melhores momentos dos encontros. Um dos homens achou engraçado encontrar o ator ali, considerando que há pouco tempo ele havia se envolvido em um caso de violência de gênero. “Nem pode dizer que não sabia que estava errado, olha lá.” Não parece, pela minha descrição, mas foi bem engraçado. Ainda em Santo André, um senhor com poucos dentes na boca e uma faca tatuada no antebraço que parecia saído de um filme de suspense, assustava. Quando ele começou a falar, e aquela era a sua “formatura”, o último encontro, a clareza de pensamento dele jogou o preconceito de volta na minha cara. Aliás, se surpreender nesses ambientes foi algo constante. Considerando que a violência doméstica não faz distinção de escolaridade nem de classe social, era sempre um desafio saber quem estava diante de você.
São Paulo concentra formas diversas de reflexão para homens agressores, mas em todo o Brasil há projetos de destaque com o mesmo espírito. No Rio Grande no Norte, grupos reflexivos tinham a expectativa de reduzir pela metade o nível de reincidência, mas por três anos eles permaneceram inativos. Já o Ministério Público de Mato Grosso, com o projeto Lá em Casa Quem Manda é o Respeito, organiza reuniões com homens que estão presos. Na Subsecretaria de Política para Mulheres do Distrito Federal, o trabalho do Núcleo de Atendimento às Famílias e a Autores de Violência Doméstica trabalhava com uma média de 40 homens em 2012, e, em 2015, encaminhou 115 agressores.
ILHA CONTRA O MACHISMO
Todos os homens que passam pelos cursos saem diferentes, de alguma forma. A maioria parece entender que não pode mais usar a violência na relação com as mulheres, ainda que boa parte deles não entenda muito bem as razões para essa mudança. “Uma dificuldade é que o grupo é o único lugar que fala aquelas coisas para aquele homem. Fora dali, ele vai à igreja, ao bar, liga a TV, e todos ajudam a reforçar os conteúdos machistas”, desabafa Flávio Urra. “O cara que fica muito calado, o que tem uma convicção religiosa muito forte ou o que apresenta transtorno mental, e aqui são grupos que nós já mapeamos como os mais propensos a reincidir na violência”, revela Sérgio Barbosa.
Apesar das dificuldades, acompanhar estes homens é entrar em contato com histórias de vida surpreendentes. Alguns parecem animados por estarem, possivelmente pela primeira vez na vida, tendo quem os escute. Outros parecem recrudescer diante da obrigação de estar ali e reforçam o estereótipo de agressor. Há o jovem que começa a dissertar sobre a diferença, na visão dele, entre “mulheres fáceis” e “mulheres decentes”, na frente da juíza, mostrando não entender a gravidade do que está dizendo (e que deve ter complicado bastante sua situação judicial). No fim, fica a sensação de que a esperança está mais no empenho dos homens que trabalham com a missão de reformular o pensamento dos agressores. As equipes multidisciplinares mostram paciência, engajamento, resignação e não perdem a fé. Não chegamos a presenciar, mas há relatos de ameaças físicas, de homens que chegaram embriagados aos encontros ou que precisaram ser postos para fora das salas à força, entre outras provações.
Em oito reuniões ao todo nos três grupos, ouvimos coisas que possivelmente tirariam qualquer homem de boa vontade do sério. Mas que não abalou a firmeza de Eurico Jardim, ator e bacharel em matemática, ou a boa vontade de Gilberto Anísio, economista e especialista em café – era ele o responsável pela bebida nas reuniões -, nem a veia provocadora de José Luis Querido, psicólogo que precisa explicar que sim, aquele é seu sobrenome mesmo. Se eles, entre tantos outros, dedicam a vida a essa causa, não há razões para não acreditarmos também.
Veja publicação original: AGRESSORES: Uma sala de aula apenas com homens. A lição? Entender por que não podem agredir uma mulher