Saiu no site REVISTA CLAUDIA
Fotógrafos são sensíveis. Mas poucas vezes vi uma profissional delicadamente sensível como a carioca Nana Moraes, autora de mais de 200 capas de CLAUDIA e de centenas de retratos publicados ao longo dos 20 anos que trabalhou nesta revista. Eu ainda não estava na equipe, mas me contaram que Nana era pouco mais que uma menina franzina quando chegou pela primeira vez à redação como assistente de seu pai, o grande fotógrafo José Antonio Moraes. Dividi com ela vários momentos incríveis, como a reportagem sobre uma rádio comunitária feita por feministas que desafiavam o machismo no alto do Complexo do Alemão.
A parceria mais importante com Nana, porém, teve Elza Soares no centro da cena, em 2009. Para o perfil da cantora que melhor encarna o Brasil passamos 9 horas no estúdio da fotógrafa – um casarão antigo, com janelões, em Santa Tereza, que à tarde cheira a bolo saindo do forno. Nana cuidou para que o ambiente tivesse a aura do aconchego que queríamos oferecer à nossa musa maior. Mandou preparar um salmão levinho, porque Elza merecia (e merece!), e ficou observando a estrela desfilar um guarda-roupa para escolher o que lhe caísse melhor.
Elza havia levado uma Van lotada com seus inúmeros vestidos justos de diva, um look preto de roqueira, vintages de Dener e Markito e um Ronaldo Fraga, verde celestial, além de cílios, boás, pérolas e bijuterias. Nos sapatos que Fernando Pires esculpiu sob medida para o pezinho 33, os saltos de 15 centímetros socorrem Elza Soares em seu 1,51 metro. Ela sorveu o momento das fotos como se fosse a sua primeira vez de artista, embora já estivesse na estrada por mais de cinco décadas. Naquele clima, nossa divina viraria a noite, disposta a conversar, responder perguntas e a posar para Nana Moraes.
Depois de fotografar os principais nomes do teatro, do cinema, da música e da TV, ela mirou sua lente para as mulheres que ninguém vê, as rejeitadas que ninguém quer por perto. Em 2012, publicou o livro Andorinhas, contando em texto, foto e pinturas a vida de prostitutas que ganhavam o pão à beira da Rodovia Presidente Dutra. O projeto atual, Ausência, em exposição no Rio de Janeiro, é o suprassumo da sensibilidade da profissional. Trata-se de uma série de fotos, manuscritos e patchworks sobre as presidiárias e os familiares que elas deixaram para trás quando foram detidas. Nana religou as duas pontas, reaproximou mães e filhos por meio de uma correspondência fotográfica.
Em 15 visitas ao Presídio Nelson Hungria, no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu, Nana captou cada uma das prisioneiras tendo ao fundo um céu azul plotado. Queria que as mulheres se sentissem em liberdade e que suas crianças as vissem como mães – não como criminosas trancafiadas. Muitas encarceradas confessaram à fotógrafa que por muito tempo não receberam notícias de seus meninos e meninas, e que a troca de cartas inaugurava a retomada do contato perdido.
Senti orgulho da minha amiga e conto aqui a conversa que tive com ela:
Quando decidiu fazer Ausência?
A ideia surgiu quando eu finalizava Andorinhas. Depois de fotografar um segmento tão carente e abandonado, para onde eu iria? Enquanto realizava Andorinhas, muitas prostitutas me falavam: “Sou prostituta, mas não sou criminosa”. Daí veio a ideia de mergulhar no mundo das presidiárias. “Elas precisam de voz”, pensei. Comecei em 2011 com muita persistência para conseguir as autorizações necessárias – não é fácil entrar em prisões.
O que queria mostrar?
Eu me interesso pelo ser humano. Então, fiz um estudo profundo sobre essa realidade. Foi o primeiro passo para entender o que significava estar confinado. Isso me deu uma consciência muito grande. Quando o homem está detido, a esposa ainda consegue segurar a família, cuidar dela. Mas se a mulher é presa, o laço familiar se rompe instantaneamente e se destroça. Os filhos ficam com vizinhos, são recolhidos por avós e tios ou vão para lugar algum. Resta a eles o abandono. A presa sabe disso, enfrenta uma angústia tremenda e acaba sendo, assim, duplamente penalizada. Por isso escolhi como foco a relação entre a mãe e seus filhos fora da prisão. Mas ao me entregar a esse trabalho, logo percebi que fotografar apenas não aplacaria meu desejo de entrar na subjetividade dessas mulheres. Vi, principalmente, o quanto seria importante dar algo em troca. Então, sabendo que as presidiárias praticamente não recebem visitas, muito menos dos filhos, criei o projeto Travessia, do qual a exposição Ausência faz parte. O objetivo era reaproximá-los.
Como chegou às mulheres que viraram suas personagens?
O trabalho começou com 17 mulheres e foi finalizado com apenas seis. As famílias das outras nove não permitiram que eu mantivesse contato com elas. Montei um kit com papel, caneta e envelopes e entreguei às mães. Depois, levei ao presidio um fundo de céu azul e fotografei. Sem artifícios ou interpretações. As cartas e as fotos seguiram pelo Correio. Ao final, voltei com as imagens dos filhos e fiz questão de entregá-las no pátio de visitas, sempre vazio.
Você juntou as personagens a palavras que refletem sentimentos. Por que?
As representações contam as histórias delas. A maioria das mulheres que conheci perdeu a guarda dos filhos ou descobriu que eles haviam sido oferecidos em adoção. Para cada uma das seis, fiz associações com peças comuns, que estão em todas as casas. Escolhi seis palavras-chaves: o cobertor representa DOR; a toalha de mesa, SAUDADE; a cortina, PERDA; o tapete, VIOLÊNCIA; a toalha de banho, ABANDONO e a manta de sofá, PERDÃO.
Como ligou os temas às presas?
A mulher representada pela DOR tem um casal de filhos. Ela é de Barra Mansa (RJ). O menino mais velho, de 12 anos, vive em um abrigo, porque foi rejeitado pelos parentes, e possivelmente está no cadastro de adoção. A que encarna a SAUDADE está presa por tráfico de drogas e vem de uma família de boias-frias paranaenses. Ela não acreditou quando eu disse que iria até a Cidade Alto Paraná (PR) para conversar com os seus filhos. E quando cheguei lá para fotografá-los foi uma comoção. A mulher que simboliza a PERDA estava grávida quando a detiveram. Tiraram dela a guarda dos quatro filhos. Ela contou que pariu algemada e manteve o bebê no presídio até os 8 meses. Hoje, uma amiga de cela, posta em liberdade, cuida do menino. A da VIOLÊNCIA saiu de Valença (RJ). A filhinha dela tinha um mês quando o namorado descobriu que ele não era o pai. Deu uma surra na mulher, pegou a bebezinha pelos pés e disse que a jogaria do alto do morro. Felizmente não cumpriu a ameaça.
Por que incluiu o bordado neste trabalho?
Eu me inspirei nas Arpilleras chilenas. Violeta Parra (compositora e ativista falecida em Santiago em 1967) divulgou muito essa técnica têxtil que adota bordados de conteúdo político – uma forma de demonstrar resistência. Meu dedo ficou em carne viva costurando essas peças, mas foi o jeito que escolhi para contar as histórias. É como se eu estivesse remendando as relações entre as mães e seus filhos e filhas.
Você contou com ajuda para bordar?
Bordei e costurei tudo manualmente e sozinha. Demorei cinco meses para concluir essa etapa. Catei em confecções e costureiras de bairro retalhos de seda, jeans, algodão e os misturei com trapos de roupas e pano de chão. Para o outro lado, fora dos muros da prisão, ampliei as fotos dos filhos em papel canvas (como as fotos das mães) e bordei símbolos e palavras que ouvi nas entrevistas. Com a delicadeza do bordado, marquei, os rostos dessas crianças traumatizadas.
Quem ensinou você a bordar?
Aprendi pesquisando em livros e vendo tutoriais na internet.
Por que adotou também cartas?
Adoro cartas. Elas trazem intimidade, são a melhor forma de expressar as emoções, os sentimentos.
Como saiu dessa experiência?
Você nem pode imaginar como fui atingida por aquelas histórias… Eu encontrei vidas esgarçadas e relações violentamente rasgadas.
Veja publicação original: Nana Moraes junta presidiárias e seus filhos em fotos e bordados