Saiu no site: REVISTA TRIP
Em 2015, o Tulio, meu parceiro, escreveu o artigo “Você é racista – só não sabe disso ainda” com um ponto que causou muito desconforto nas minhas redes sociais quando compartilhei. Ele dizia exatamente isso: “Ter privilégios significa usufruir de oportunidades e escolhas sem ter que pensar sobre isso, como ligar a torneira de casa para ter água. Decisões que parecem banais, mas não são, por causa da existência de um conjunto de indivíduos da mesma sociedade que não têm as mesmas oportunidades”.
A palavra privilégio incomoda. É perceptível, quando alguém se vê diante dos seus privilégios, que a pessoa tende a ficar na defensiva. Contudo, a palavra não incomoda mais do que o fato de estarmos numa sociedade extremamente desigual em que ter privilégio é também visto como banal.
E há coisas banais que são privilégio. Por exemplo: apenas quatro das capitais brasileiras têm água encanada em 100% das casas. E mesmo que 93% das residências urbanas do país tenham água encanada, apenas 53% têm coleta de esgoto. Se você mora numa das 33 cidades brasileiras que não contam com abastecimento de água, ou em uma das mais de 2 mil cidades onde não há uma rede coletora de esgoto, você corre o risco de ter doenças como esquistossomose, febre amarela, febre paratifóide, amebíase, ancilostomíase, ascaridíase, cisticercose, cólera, dengue, disenterias, elefantíase, malária, poliomielite, teníase, tricuríase, giardíase, hepatite, infecções na pele e nos olhos e leptospirose. Risco que eu cresci sem correr. Risco que uma parcela da população não corre – por causa de privilégios.
“Não ter que ir até um poço pegar água para cozinhar é privilégio. Uma torneira com água corrente todo dia também. Parece simples, mas não é”
Stephanie Ribeiro
Não ter que ir até um poço pegar água para fazer comida é um privilégio. Uma torneira com água corrente todo dia é um privilégio, ainda mais em tempos que se fala de racionamento e parte da periferia de São Paulo fica sem água recorrentemente. Parece simples, mas não é. Lembro quando peguei um ônibus no Rio Grande do Sul e conversei com uma passageira que me relatou que a família tinha casos recorrentes de leptospirose. Eu nunca soube de algo parecido na minha família. Sou do interior de São Paulo, de Araraquara, uma cidade que tem um dos melhores Índices de Desenvolvimento Humano do país. É claro que aquela mulher branca têm privilégios raciais que eu, mulher negra (e que qualquer negro do Brasil), não tenho, pois o racismo é estrutural e estruturante. Mas por questões de território e classe, eu gozo de privilégios em relação a ela.
Ao crescer, meu avô me dizia que Araraquara já tinha ficado entre as cidades mais arborizadas do país. De fato, minha infância toda eu brincava em parques cheios de árvores e com equipamentos urbanos como escorregador, gangorras e quadras de basquete e vôlei. Isso sem contar uma pista de atletismo que tinha perto de casa. Tudo ali, de graça e ao ar livre. Depois, entrei em várias e várias escolas públicas que tinham estruturas mínimas de qualidade: paredes limpas, banheiros limpos e com papel higiênico, salas com iluminação natural, alto desempenho em análises de ensino governamentais, merenda diária e com qualidade. Araraquara também conta pouco mais de 200 mil habitantes, baixos índices de criminalidade, diversos espaços culturais e uma série de outros fatores que tornam essa cidade a sétima melhor cidade para se viver em São Paulo e o 14ª IDH municipal do país.
Nascer em uma cidade como essa, com uma mãe solteira que teve apoio da família, me fez chegar onde estou agora – mesmo sendo uma mulher negra em um país em que, na minha faixa etária (16-24 anos), temos três vezes mais chances de sermos estupradas. Aos 23, tenho um diploma em arquitetura e urbanismo pela PUC. É claro que isso tem a ver com o esforço de estudar, mas o esforço não basta se você não tem apoio e condições mínimas. Assumir isso não significa assumir que não tive mérito nessas conquistas ou que não enfrentei o racismo institucional.
“Não deixei de ser uma mulher negra quando entrei numa universidade. Sou negra, minha vida é marcada pela minha cor, o ‘negra’ chega antes”
Stephanie Ribeiro
Não deixei de ser uma mulher negra quando entrei numa universidade. Eu sou negra, minha vida é marcada pela minha cor, o negra chega antes da Stephanie. Porém, mesmo sendo negra, pude gozar de um privilégio que só os brancos têm com facilidade: a mobilidade social. Os meus privilégios territoriais e de ensino me alçam a um “outro lugar”, onde o racismo ainda existe, mas eu já consigo gozar de possibilidades de escolhas.
“Privilégio é contexto, território, raça, classe, gênero, é algo que nem sempre você escolhe, mas que concede alternativas e oportunidades”
Stephanie Ribeiro
O privilégio é a escolha. Não é só ter algo que te favorece, mas é a possibilidade, mesmo que mínima, de escolher onde morar, o que comer, como viver, onde trabalhar, o que estudar. Por mais que a gente possa ir traçando várias comparações, o fato é que privilégio é contexto, é território, é raça, é classe, é gênero, é algo que nem sempre você escolhe, mas que invariavelmente concede alternativas e oportunidades que outros não têm.
Sendo negra, é fato que ter privilégios me fez ser impactada pelo racismo de formas muito diferentes do que um jovem na mesma idade numa periferia paulistana, carioca, soteropolitana ou amazonense. Na minha faixa etária, é recorrente que jovens da classe C e D sejam mães – é o que estudiosos chamam de “geração nem nem”. Minha família nunca deixou de, segundo o IBGE, ser vista como classe C, mas é diferente ser classe C no interior. Eu e minhas amigas de escola não somos da “geração nem nem”. Por outro lado, eu vejo a minha ascensão isolada. O negro, quando ascende, ascende sozinho. Então você pode ser um negro privilegiado e ter familiares que ainda são estatísticas, como eu tenho tios presos. As concessões de privilégios para alguns indivíduos negros não impactam ou transformam essa estrutura do dia para a noite.
Em 2016, fui fazer um trabalho com outros colegas arquitetos na periferia de São Paulo e dos momentos na universidade – contando inclusive um professor falando da minha “pele escurinha” na frente da sala toda – o mais desconfortável foi estar com um grupo de quase 20 pessoas brancas fazendo uma “análise” da “outra” realidade. As pessoas da “outra” realidade eram negras, crianças negras, mulheres negras levando os filhos para escola, pessoas negras escutando samba alto que nem meu avô fazia, e em determinado momento um garoto apontou para o grupo e disse: “Olha as patricinhas. As riquinhas”.
“Sou uma mulher negra que não está no lugar pré-estabelecido para o negro, mas também não goza do privilégio de se adequar a espaços brancos”
Stephanie Ribeiro
Algumas meninas do grupo se incomodaram, mesmo todas elas tendo carros, que os pais cedem ou presenteiam. Enquanto aqueles garotos tem a chance de morrer a qualquer momento, basta um polícia “confundir” a bola com drogas. A minha inquietação é que depois de dias eu continuava tentando entender “qual é o meu lugar”. Quando eu vou na periferia, sei que sou negra como eles, mas não tive as mesmas vivências de ser periférica que aquelas pessoas. Quando estou em ambientes brancos de classe média, como na universidade, me sinto um nada, pois eu sou negra. No final, eu sou uma mulher negra que não está no lugar pré-estabelecido para o negro, mas também não goza do privilégio de se adequar a espaços brancos, sendo vista e tratada muitas vezes como impostora. Eu tenho privilégios, e o que uma pessoa negra com privilégios deve fazer?
“Se você tem algo que a maioria não tem, isso não significa que você é especial, o ‘escolhido’, e sim que a estrutura é desigual e injusta”
Stephanie Ribeiro
Existe uma linha e eu estou no meio dela. Um não-lugar para o sujeito negro, que é sempre relegado a imposição de uma pobreza estrutural e da falta de acessos. E que dada a forma como caminham as medidas do atual governo, só terá menos possibilidades ainda. E eu não quero ser branca. E não sou uma mulher branca. Eu quero ser uma negra com o mínimo de possibilidades de escolhas possíveis. Ter privilégios é um lugar de conforto, que precisa não ser. Se você tem algo que a maioria não tem, isso não significa que você é especial, o “escolhido”, e sim que a estrutura é desigual e injusta.
O privilégio precisa ser apontado e, quando for, que isso te faça refletir: qual é o seu lugar e quais as suas possibilidades de mudar a estrutura. Eu, por exemplo, quero que as pessoas brancas tenham a mesma sensação que tenho quando estou numa sala de aula em que não vejo ninguém como eu. Quero lembrar diariamente para pessoas brancas que não adianta me chamar para ir numa festinha para mostrar que sou a amiga negra, se não vai ter outros como eu. Quero lembrar que não se acaba com o racismo se você não consegue ampliar seus espaços para que negros também estejam neles.
Quantos negros fazem parte do seu dia a dia?
Quantos negros sentam do seu lado no trabalho?
Quantos negros estão na mesma posição que você e não servindo para você?
A escrita em espaços como esse é um privilégio, e é com ela que eu pergunto: até quando a naturalização do privilégio de poucos como algo normal, que se dá em cima do desprivilégio de muitos como “destino”, vai ser chamada de mérito?
Veja publicação original: SOBRE SER UMA NEGRA COM PRIVILÉGIOS