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Fundamentalismo impede avanço da cidadania LGBT no Congresso

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Eduardo Cunha articulou de forma inédita a bancada BBB – da bala, do boi e da Bíblia – responsável por barrar projetos de direitos das minorias.
Erika Kokay – Deputada federal e vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara

A 21ª edição da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo traz a temática da laicidade do Estado para o centro do debate público e da luta por direitos e cidadania da comunidade LGBT. É um tema da mais alta importância tendo em vista o recrudescimento do obscurantismo e do fundamentalismo na definição de leis e de políticas públicas no Brasil.

Sempre que trazemos a questão da laicidade do Estado à baila, somos atacados pelos fundamentalistas que se valem da desonestidade intelectual para alimentar o ódio, a desinformação, a ignorância e a violência – simbólica e literal. Por isso, impõe-se a necessidade de desfazer inverdades que permeiam essa discussão, a exemplo de que Estado laico seria sinônimo de Estado antirreligioso.

Garantir o Estado laico é preservar o princípio de que o Estado não exercerá seu poder político submetido ao prisma de uma religião ou de preceitos religiosos, sejam eles quais forem. A laicidade assegura a neutralidade do Estado perante as religiões, o respeito a todos os credos, inclusive o direito de não ter credo algum.

Essa defesa é essencial para não retrocedermos em um dos valores fundantes e mais basilares das democracias: a liberdade. A laicidade, portanto, afiança a liberdade de todos e de cada um. Ela distingue de forma inequívoca o domínio público – onde exercemos nossa cidadania – do domínio privado – onde podemos professar nossa fé e nossas convicções pessoais.

Esses princípios formam o arcabouço constitutivo da sociedade contemporânea que, ao ter a democracia como um valor inegociável, trata o espaço público como sinônimo de espaço comum, de todos e de todas. Nesse sentido, o espaço público não pode ser, sob nenhuma hipótese, usurpado por nenhum cidadão ou grupo de cidadãos para fazer valer suas ideias e convicções sobre a coletividade.

Infelizmente, a laicidade do Estado é rompida diariamente no Parlamento brasileiro, formado por maiorias que ignoram solenemente os princípios democráticos. Os fundamentalistas orgulham-se de legislar dialogando com ideias conservadoras que são muitas vezes majoritárias na sociedade, com preceitos que atentam contra o Estado Democrático de Direito. Os efeitos desse processo são nefastos, pois fazem que o Parlamento produza legislações que estão abaixo do marco civilizatório.

Para os parlamentares fundamentalistas, não importam as leis, a Constituição, o interesse público. Eles partem do pressuposto de que sua visão de mundo, sua forma de amar, sua igreja e suas ideias são universais. Afirmam seus valores a partir da negação do outro. Negam, por exemplo, a existência da pluralidade e da diversidade humana.

A pretensão universalista do fundamentalismo é extremamente perniciosa, autoritária e atentatória contra os direitos. Ao legislar tomando o seu mundo como a totalidade dos mundos, hierarquizam seres humanos e definem de modo absolutamente discriminatório quem tem o direito de ser e de amar e quem não tem. Quem tem o direito de constituir uma família e quem não tem, quem tem o direito de viver plenamente a sua cidadania e quem não tem.

Vivemos um período de avanço do conservadorismo no Parlamento. Não é exagero falar que essa é a legislatura mais conservadora desde a redemocratização. Os ideais obscurantistas conquistaram o seu apogeu com a ascensão de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) à presidência da Câmara. Apesar de ele não estar mais à frente da casa, o modus operandi por ele engendrado continua em pleno funcionamento.

Por métodos heterodoxos e nada republicanos, inclusive com o uso do expediente da corrupção, Cunha conseguiu uma façanha: ele articulou de forma inédita as bancadas fundamentalistas, conhecidas popularmente como bancada BBB – da bala, do boi e da Bíblia –, que constituem juntas uma poderosa maioria no Congresso.

A partir dessa articulação, Cunha passou a operar pautas prioritárias dessas bancadas, as quais passaram a agir em bloco e a votar em projetos de interesse uma da outra. No rol desses interesses, estão projetos que atentam contra os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, contra os direitos de indígenas e quilombolas ao território, que atacam a juventude negra e periférica e, também, projetos que impedem o alargamento da cidadania LGBT.

Além de não permitir a aprovação de projetos fundamentais como o que estabelece a criminalização da LGBTfobia, as bancadas fundamentalistas religiosas, punitivistas e patrimonialistas passaram a atuar de modo proativo contra as pautas de direitos humanos. Mais do que barrar propostas legislativas que ampliam a cidadania LGBT, passaram a propor projetos que são absolutamente medievais, a exemplo, do que propõe a cura gay ou mesmo o que estabelece o Estatuto da Família, o qual só reconhece como legítimo o modelo de família nuclear heteronormativa – formado pela união de um homem e uma mulher.

Nessa perspectiva, a forte influência do fundamentalismo LGBTfóbico tem sido o grande entrave para que o Parlamento promova avanços legislativos que atendam ao conjunto da sociedade brasileira. Iniciativas de lei que asseguram a punição para a incitação de crimes de ódio, o casamento civil igualitário e que estabelece o direito à identidade de gênero, para citar apenas alguns exemplos, encontram enormes dificuldades em prosperar num terreno muitas vezes hostil.

Vivenciamos uma espécie de generofobia no Congresso. Fundamentalistas passaram a perseguir com lupa essa palavra [gênero] em qualquer texto legislativo. Ouso dizer que até mesmo um projeto que trate sobre gêneros alimentícios correria o risco de não ser aprovado, tamanha a insensatez dessas bancadas.

Tão grave quanto a política persecutória contra iniciativas de lei que garantam cidadania plena e igualdade de direitos aos LGBTs, são os discursos de ódio proferidos diuturnamente da tribuna da Câmara Federal, discursos que alimentam a desumanização simbólica.

Costumo dizer que os discursos não são inocentes. Eles se transformam em balas, pancadas e mortes literais. São ações destruidoras da própria condição humana. Portanto, não tenho dúvidas de que eles são corresponsáveis pelo fato de o Brasil figurar entre os países que mais matam travestis e transexuais no mundo, posto que o discurso é a ponte entre o pensamento e a ação.

De acordo com levantamento feito pela ONG Transgender Europe, o Brasil matou ao menos 868 travestis e transexuais nos últimos oito anos, o que faz que estejamos no topo do ranking de registro de homicídios de pessoas transgêneras no mundo.

O Brasil não será um país verdadeiramente democrático, justo e igualitário enquanto houver dor para se exercer o direito de ser como se é. É inaceitável que travestis e transexuais vivam uma luta diária para viver sua identidade, que corram risco de vida, de serem vítimas de violência ou mesmo excluídas do mercado de trabalho.

Como conviver como uma realidade em que todas essas adversidades – somadas à ausência de políticas públicas inclusivas de saúde, educação, trabalho e renda – fazem que as pessoas trans no Brasil tenham uma expectativa de vida de apenas 35 anos, de acordo com dados da União Nacional LGBT. Tal expectativa de vida contrasta, e muito, com a expectativa de vida média dos brasileiros e brasileiras, que é de 75,5 anos, de acordo com o IBGE.

Vivemos tempos radicalmente sombrios. A ruptura democrática em curso no Brasil é sustentada pelo fundamentalismo, que hoje pauta não somente as discussões legislativas, mas também define ou não a existência de políticas públicas para LGBTs no Executivo federal.

Exemplos emblemáticos de apropriação do Estado brasileiro pelo pensamento obscurantista são a proposta de Escola Sem Partido e a retirada dos conceitos de identidade de gênero e de orientação sexual da base nacional curricular comum, pelo Ministério da Educação.

Nesse ínterim, a 21ª Parada do Orgulho LGTB de São Paulo traz um tema que está na ordem do dia. O direito de ser, de amar e de se apropriar da cidade são lutas que caracterizam o movimento LGBT em sua busca por um mundo em que caibam todos e todas. Onde não sejamos discriminados, mortos e humilhados por querermos viver intensamente nossa liberdade. Ocupar a cidade, libertar os corpos, os beijos, os desejos e as mais diversas formas de amar são atos revolucionários numa sociedade que insiste em nos impor armários, prisões e manicômios.

Por fim, para que possamos romper com a lógica heteronormativa excludente que hoje ocupa, ilegitimamente, os principais postos de poder da República, é urgente tomarmos a História pelas mãos. E também fazermos desta edição um ato em defesa da democracia, dos direitos e de eleições diretas já. Pois não há direitos sem democracia, bem como não há democracia real e de alta intensidade sem a garantia de direitos.

*Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do HuffPost Brasil e não representa ideias ou opiniões do veículo. Mundialmente, o HuffPost oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 

 

 

Publicação Original: Fundamentalismo impede avanço da cidadania LGBT no Congresso

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